Os desafios para a previdência complementar em tempos de uberização do trabalho

Próximo de completar 200 anos, o sistema de previdência complementar abrange 3,6 milhões de participantes ativos e aposentados; neste artigo exclusivo, o economista Henrique Jäger destaca os obstáculos políticos e econômicos que podem impactar o futuro das entidades que compõem o setor

previdência complementar
Atualmente, mais de duas dezenas de projetos relacionados à previdência complementar tramitam no Congresso Nacional (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Por Henrique Jäger*

Segundo a Associação Brasileira de Previdência Privada (ABRAPP), existem atualmente no país 291 entidades fechadas de previdência complementar, abrangendo 2,8 milhões de participantes ativos e 838 mil participantes em gozo do benefício, totalizando 1,14 trilhão de ativos administrados o equivalente a 14,1% do Produto Interno Bruto (PIB). Todo esse sistema de previdência complementar está prestes a completar duzentos anos de história, com sérias questões a serem enfrentadas.

De um lado, está o desafio de construção permanente de uma governança nas entidades que garanta a mitigação dos riscos (que são muitos) e a busca contínua pela eficiência; de outro, e não menos importante, desponta a questão de como estas entidades sobreviverão em um ambiente que tende a ser cada vez mais hostil, seja do ponto de vista da legislação, como também do cenário econômico contemporâneo marcado pela fragilidade na relação entre o trabalhador e a empresa e pela precarização extremada das relações de trabalho processo denominado ‘uberização’.

Desde o surgimento, em 1835, da primeira entidade de previdência privada no país, com o Brasil ainda governado pela monarquia, o sistema de previdência passou por grandes transformações. Nos primeiros 100 anos, a falta de um sistema universal de previdência social impunha às instituições pioneiras o papel de garantir aos trabalhadores a elas vinculados uma proteção inicial e básica para o período de retiro da atividade laboral, ou de pagamento de pensão à família do trabalhador falecido. 

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O sistema deu um primeiro passo em direção à universalização nos anos 1930, com a criação de seis Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), que englobaram as poucas caixas de previdência que existiam na época. Os IAPs abrangiam grandes grupos de profissionais e eram administrados por comissões compostas por representantes dos empresários e dos trabalhadores. Importante destacar que, naquele momento, aproximadamente 70% da população brasileira se concentrava em áreas e atividades rurais do país, alijadas desse processo, sem nenhuma proteção pós-laboral.

Com a ruptura do ambiente democrático, em 1964, a recém-instalada ditadura militar impôs uma série de reformas ao país, incluindo à incorporação dos IAPs ao Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), que unificou a legislação relativa às contribuições e aos benefícios e negou aos trabalhadores o direito de participar da administração desta instituição. Estava lançada as bases do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), responsável pela previdência básica no Brasil.

Empresas lançaram planos de de previdência complementar como forma de atração e retenção de trabalhadores (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

O país, naquele momento, já era preponderantemente urbano, mas os trabalhadores rurais continuavam à margem de qualquer proteção pós-laboral. A previdência complementar foi regulamentada em 1977, em um ambiente de alto crescimento econômico e industrialização do país, com demanda crescente por mão de obra qualificada e retomada da organização autônoma dos trabalhadores, apesar da continuidade da ditadura militar.

Neste ambiente, as principais empresas do país, públicas e privadas, começaram a implantar instituições fechadas de previdência complementar como estratégia central de suas políticas de gestão dos trabalhadores, com o intuito de atrair e reter seus empregados. A relação trabalhador/empresa era estável e de longo prazo e os sindicatos pressionavam por melhores condições de trabalho. Foi a partir dessas bases que o sistema de previdência complementar se firmou e se desenvolveu.

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As empresas administravam suas fundações de previdência complementar não só como mecanismo de atração e retenção dos trabalhadores, mas também como mecanismo de ajuste de suas despesas de pessoal, com raras exceções. O que significava não repassar para as fundações os recursos que deveriam ser repassados por conta de suas decisões (a Petros é um exemplo dessa prática) e, em alguns casos, até utilizando os recursos da fundação em seu próprio benefício (fundação Rubem Berta/Varig é um exemplo). 

Também deve ser destacado que a quase totalidade dos trabalhadores destas empresas eram jovens quando as fundações foram criadas, com um longo horizonte laboral pela frente e pouca preocupação sobre a gestão dos seus recursos por parte destas instituições. Contribuiu para esse distanciamento dos trabalhadores a decisão da ditadura, já destacada acima, de alijar os representantes dos trabalhadores da gestão dos recursos previdenciários.

Se os representantes dos trabalhadores estivessem mais presentes na gestão de suas fundações nos anos 80 e 90 do século passado teriam percebido que as condições econômicas, políticas e sociais que propiciaram o surgimento e proliferação das fundações fechadas de previdência complementar foram paulatinamente mudando, com a deterioração do ambiente econômico, a crescente precarização das relações de trabalho e o aumento do desemprego. 

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Problemas pontuais sempre existiram na previdência complementar fechada, mas as situações não previstas foram se avolumando e os trabalhadores se dando conta de que deveriam se fazer mais presentes na gestão das fundações. No início dos anos 2000, por meio do aumento das pressões por parte dos representantes dos trabalhadores, a legislação relativa à gestão destas instituições foi sendo aperfeiçoada no sentido de garantir uma maior participação na administração e fiscalização. Mas, em alguns casos, os estragos já estavam feitos e os problemas só iriam aparecer mais à frente.

A eleição presidencial de 2014 é um divisor de águas nesta história. Depois de um longo período de crescimento econômico e redução de taxa de juros, a situação muda radicalmente e, dentre os fatores que contribuíram para essa mudança, destaca-se o comportamento do grupamento derrotado na eleição, apoiado pela elite econômica do país, que não aceitou o resultado e deu continuidade ao projeto claro de enfraquecimento do governo, iniciado em 2013, por meio da desestabilização econômica e política do país, ancoradas nas ações desenvolvidas pela autodenominada Operação Lava Jato.

Como resultado desta estratégia de desestabilização, o PIB caiu 3,8%, em 2015, pior resultado em 25 anos. Entre 2013 e 2015, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) baixou 34,7%, passando de 60.952,08 pontos para 43.349,96. Para piorar a situação, as instabilidades política e econômica implicaram em um aumento da taxa de juros, o que derrubou o preço dos títulos e implicou em elevadas perdas para as fundações que possuíam títulos públicos marcados a mercado em suas carteiras. 

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No final de 2015, o déficit acumulado das fundações somava mais de R$ 70 bilhões, de acordo com dados divulgados pela ABRAPP. Importante destacar que a quase totalidade das fundações que apresentaram déficits tinham problemas no relacionamento com o patrocinador e ou passivos ocultos, que também impactaram seus resultados.

Os elevados déficits de algumas fundações registrados em 2015, principalmente algumas ligadas a empresas estatais, passaram a ser explorados pela grande mídia, processo este turbinado por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), instalada na Câmara dos Deputados como parte da estratégia do então presidente desta casa, Eduardo Cunha, de construir o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

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A uberização do trabalho tem colocado em xeque os planos de previdência complementar (Foto: Roberto Parizotti/Fotos Públicas)

Esta politização da situação dos fundos trouxe de volta o debate de um maior controle sobre estas fundações e da necessidade de melhorar os mecanismos internos de controle e gestão de risco. Em princípio nada contra, mais controle e melhor gestão nunca são demais, mas depende de como está se propondo fazer isso.

Tramitam hoje no Congresso Nacional mais de duas dezenas de projetos com propostas que impactam as entidades fechadas de previdência complementar. Temas como equacionamento, portabilidade, imposto de renda, teto de pagamento dos benefícios, regulação dos representantes dos trabalhadores e gestão das fundações/recursos se destacam perante os demais.

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Quanto aos representantes dos trabalhadores, que devem ser eleitos, algumas propostas tentam impor uma redução das suas participações, lembrando os tempos da ditadura. Existe até mesmo o plano de inserir profissionais do mercado financeiro nas instâncias de decisões na condição de “especialistas”.

Preocupa em especial a iniciativa do Executivo Federal, por meio do projeto de lei conhecido como IMK (Iniciativas de Mercados de Capitais), elaborado com a participação do governo e dos empresários, mas sem a participação dos trabalhadores e seus representantes. Este projeto de lei (PL) propõe uma ampla revisão das leis complementares 108 e 109, que definem o arcabouço jurídico para o funcionamento das entidades fechadas de previdência complementar. O PL IMK, com o discurso de harmonização e convergência das regras das entidades de previdência fechadas com as abertas, promove uma ampla flexibilização das normas do setor em benefício das entidades de previdência aberta e não leva em consideração as propostas de modernização das leis 108 e 109 apresentadas pelos trabalhadores.

Se estas propostas forem aprovadas, a tendência é que a representação dos trabalhadores, que em última instância são os donos do dinheiro, diminua e que os bancos e seguradoras, com suas taxas exorbitantes, avancem na administração dos recursos previdenciários dos trabalhadores ativos e aposentados.

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Por fim, é importante destacar que as mudanças estruturais no mercado de trabalho, com o aumento do desemprego estrutural e da precarização das relações de trabalho, assim como as alterações na gestão dos trabalhadores por parte das empresas, colocam um grande desafio para as entidades fechadas de previdência complementar. Estas mudanças estruturais retiram destas últimas o protagonismo nas políticas de gestão dos trabalhadores praticadas pelas empresas, que em muitos casos passam a não oferecer mais esta opção para os novos trabalhadores ou adotam planos que não atraem os novos entrantes.

Entretanto, apesar das questões levantadas acima acerca das iniciativas no Congresso Nacional para enfraquecer as entidades fechadas de previdência complementar e das mudanças estruturais econômicas e sociais que retiram o protagonismo destas entidades nas políticas de gestão de pessoas adotadas pelas empresas, o baixo valor da previdência básica (RGPS) e as condições cada vez mais difíceis para acessar esse benefício colocam a previdência complementar fechada como uma opção real para garantir a qualidade de vida dos trabalhadores. Deste modo, a manutenção destas entidades e o fortalecimento das mesmas deve ser uma bandeira permanente dos trabalhadores. 

Estas instituições devem adotar o que há de mais moderno do ponto de vista da gestão dos recursos e de seus passivos, buscando sempre a mitigação dos riscos e ações eficientes. Quanto aos riscos institucionais, somente o aumento da pressão sobre o Congresso Nacional pode barrar as iniciativas patrocinadas pelos bancos e seguradoras para abocanhar parte importante dos recursos dos trabalhadores.

*Economista, ex-presidente da Fundação Petrobras de Seguridade Social (Petros), atualmente é assessor da Federação Única dos Trabalhadores (FUP) e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.

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