A Lava Jato e o impeachment de Dilma Rousseff foram os principais responsáveis por uma reconfiguração no cenário das fornecedoras de máquinas e equipamentos; em poucos anos, gigantes internacionais tomaram o espaço antes ocupado por empresas brasileiras
Reportagem: Guilherme Weimann | Artes: Rangel Egidio
Alguns pleonasmos são necessários, principalmente neste momento histórico de negacionismos e polarização ideológica. Diante disso, é possível afirmar que o cenário era, sim, de guerra, apesar de ser impossível dissociar a indústria bélica e do petróleo nas últimas décadas. E como toda operação militar, não poderiam faltar os elementos centrais que a caracterizam: ingerência estrangeira, aliança com a burguesia nacional e muita espionagem.
Essa arapuca começou a ser gestada no ano de 2010 e tinha como foco o Brasil, que vivia um contexto político, social e econômico muito diferente de agora, após transcorrida uma década. Depois de dois mandatos de muita popularidade de Lula, o Partido dos Trabalhadores (PT) encaminhava sua permanência no Executivo nacional a partir da eleição da primeira mulher a ocupar a Presidência da República, a economista Dilma Rousseff.
Dentre outros fatores, sua eleição pode ser explicada pela até então menor taxa de desemprego da série histórica da Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fechando o ano com apenas 5,3% de desocupados no país – o que contrasta com os 14% do último levantamento divulgado em outubro de 2020.
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Já no plano econômico, além de toda a efervescência dos programas sociais destinados à inserção da população de baixa renda no mercado de consumo, houve um fator determinante para os episódios que serão narrados a seguir: quatro anos antes, em 2006, a Petrobrás havia sido responsável pela maior descoberta de petróleo do século XXI.
Por meio de ousados investimentos em pesquisa e prospecção, a maior estatal brasileira descobriu enormes quantidades de petróleo em águas ultraprofundas, anteriores a uma robusta camada de dois quilômetros de sal. Até então com 14 bilhões de barris em reservas, a Petrobrás adquiria seu “passaporte para o futuro” com um volume de óleo e gás estimados em até 200 bilhões de barris no pré-sal. Entretanto, toda essa riqueza provavelmente geraria cobiça. E gerou.
De volta ao ano de 2010, Brasil, nação comandada por um operário nordestino que daria lugar à primeira mulher a ocupar o cargo mais alto da política nacional, e que havia lutado com armas contra a ditadura militar que assolou o país por décadas (1964-1985). Neste cenário, diálogos de diplomatas norte-americanos, vazados pelo site Wikileaks, são sintomáticos para mostrar a operação de guerra que se montou com o objetivo de quebrar qualquer controle estatal sobre o pré-sal.
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Em telegrama intitulado “A indústria do petróleo vai conseguir combater a lei do pré-sal?”, do final de 2009, o consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro demonstrou as preocupações e movimentações de agentes públicos e privados norte-americanos para acessarem a recém descoberta de petróleo. A carta detalha o diálogo da diretora da Chevron, Patrícia Pardal, com o então virtual candidato à presidência José Serra (PSDB), que prometia acabar com o regime de partilha – criado pelo governo Lula para garantir maior controle e autonomia do Estado sobre o pré-sal – caso fosse eleito no ano seguinte.
Entretanto, o plano de ter um aliado na presidência foi por água abaixo. E essa derrota dos Estados Unidos foi justamente o gatilho que acionou uma série de outras movimentações políticas e jurídicas com o objetivo de abrir essas reservas para a exploração de suas empresas.
Todo o desenrolar posterior está cada vez mais conhecido do grande público, principalmente com os recentes vazamentos do site The Intercept que comprovam a cooperação do Departamento de Estado dos EUA e do FBI com procuradores da Operação Lava Jato. Posteriormente, o impeachment de Dilma Rousseff, levado à cabo por motivações políticas, sacramentou toda essa estratégia iniciada nos anos anteriores.
Perda da soberania
Para além da disputa pelo óleo e gás em si, o que ainda pouco se discute é “o mundo invisível do petróleo”, formado por empresas fornecedoras de máquinas e equipamentos destinados à exploração e desenvolvimento da cadeia produtiva do petróleo, também conhecidas como para-petroleiras.
A Lava Jato, deflagrada em 2014, concentrou suas operações na investigação de possíveis irregularidades de contratos da Petrobrás com fornecedoras a partir de 2003, justamente o período em que as para-petroleiras internacionais, impactadas pela nova política de proteção aos produtores nacionais no governo Lula, perderam protagonismo no país.
De acordo com o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio De Janeiro (UFRJ), Iderley Colombini, o que está em jogo é uma disputa para além das reservas contidas no pré-sal. “Não se trata apenas de conquistar os lucros do petróleo brasileiro, mas sim de destruir qualquer condição do país vir a ter uma autonomia com as relações que a produção de petróleo condiciona”, opina.
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No fatídico ano de 2010, o ex-presidente Lula havia aprovado o regime de partilha. Diferentemente do modelo de concessão, aprovado em 1997 pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), essa nova legislação impunha uma participação mínima de 30% da Petrobrás, que também seria a operadora única dos campos, nos consórcios de exploração do pré-sal.
Mas, somado a isso, os governos petistas iniciaram uma valorização das empresas brasileiras fornecedoras de máquinas e equipamentos por meio da política de conteúdo local. Essa é uma regra que estabelece uma porcentagem mínima de utilização da indústria brasileira na fase de exploração e desenvolvimento dos blocos adquiridos pelos consórcios, tanto no regime de partilha, como no modelo de concessão.
No regime de concessão, a diferença é drástica desde 2003, com a ascensão de Lula à presidência. A porcentagem de conteúdo local pulou de 39% na etapa de exploração e 54% na etapa de desenvolvimento, na 4ª rodada de licitação em 2002, para 79% e 86% respectivamente, na 5ª rodada de licitação em 2003.
O golpe também é visível nesta linha do tempo. Na 13ª rodada de licitação, em 2015, última antes do impeachment de Dilma Rousseff, a porcentagem de conteúdo local foi de 73% e 80% nas etapas de exploração e desenvolvimento, respectivamente. Já na 14ª rodada de licitação, ocorrida em 2017, os números decaíram para 39% e 43%.
A mesma discrepância pode ser vista nos leilões do pré-sal ocorridas dentro do marco regulatório do regime de partilha. Único leilão ocorrido durante o governo Dilma, em 2013, contou com porcentagem de 37% na etapa de exploração e 55% na etapa de desenvolvimento. Na rodada de licitação seguinte, em 2017, as porcentagens ainda se mantiveram altas, com 41% e 46%, respectivamente. Entretanto, uma mudança na política de conteúdo local fez com que a utilização da indústria brasileira despencasse nos leilões seguintes.
Em 2017, essa política sofreu um revés. O então governo de Michel Temer (MDB), reduziu pela metade a exigência de conteúdo local nos leilões de óleo e gás. Para as áreas terrestres de exploração, o índice obrigatório passou a ser de 50%. Ainda reduziu para 18% a porcentagem para a exploração no mar e para 25% na construção dos poços. Além disso, diminuiu para 40% a exigência para sistemas de coleta e escoamento e 25% em unidades estacionárias de produção.
Além disso, José Serra finalmente cumpriu sua promessa à diretora da Chevron. O senador tucano conseguiu aprovar em 2016 o PLS 131/2015, que retirou o papel da Petrobrás como operadora única do pré-sal.
Para o coordenador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), Rodrigo Leão, estas duas mudanças quebraram toda a essência pensada para o setor pelos governos petistas nos anos anteriores. “Antes, a Petrobrás tinha que estar em todos os campos, com a aquisição de materiais brasileiros. Por isso, o ritmo de evolução da produção seria dado por esse viés. A Petrobrás daria o ritmo da nossa indústria que, por outro lado, influenciaria no ritmo de exploração do pré-sal. Quando há a redução do conteúdo nacional e a retirada da Petrobrás de todos os leilões, o coração deste processo é quebrado”, explica.
Lobby das para-petroleiras
Nos anos posteriores ao golpe de 2016, todo o marco institucional do petróleo foi alterado no Brasil. Com a flexibilização da política de conteúdo local, as empresas brasileiras de fornecimento de serviços, máquinas e equipamentos sofreram um grande impacto. Segundo estudo da KPMG, de 2018, aproximadamente 40% das para-petroleiros nacionais fecharam as portas desde 2014.
Um dos setores mais afetados foi a indústria naval, que saiu de 17.982 trabalhadores em 2007, para o seu apogeu com 61.189 postos de trabalho em 2014, e sua decadência com 19.777 no ano de 2018. Literalmente, um retrocesso de 10 anos em um ramo da indústria que estava diretamente atrelado à política de conteúdo local.
Por outro lado, de acordo com Colombini, “as grandes para-petroleiras internacionais iniciaram uma política extremamente agressiva, a qual poderia ser descrita, dentro dos manuais de economia, como dumping, juntamente com forte processo de fusão e aquisição”.
As grandes para-petroleiras – principalmente Halliburton, Baker Hughes e Schlumberger – passaram a praticar preços nas licitações muito inferiores ao padrão do mercado, mesmo tendo como implicação prejuízos no curto prazo que obrigaram as matrizes a realizar aportes financeiros.
Essas empresas restabeleceram o controle do fornecimento tecnológico no país.
“O valor médio dos contratos da Halliburton com a Petrobrás no período de 2014 até 2019 teve uma redução de 36% em relação ao período de 2007 a 2014, em compensação o número de contratos aumentou 72% no mesmo período, mesmo comparando sete anos com apenas quatro. A Baker e a Schlumberger, outras duas gigantes do mercado internacional, também realizaram movimento semelhante, tendo redução nos valores médios de contrato de 66% e 45%, respectivamente. Ambas aumentaram o número de contratos em 15% no período de 2014 a 2019 em relação ao período de 2007 a 2014. Dessa forma, essas empresas restabeleceram o controle do fornecimento tecnológico no país”, pontua Colombini.
Essa movimentação também afetou diretamente as maiores construtoras brasileiras – Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia, UTC Engenharia e Constran – envolvidas na Operação Lava Jato. Entre 2015 e 2018, a receita líquida das líderes do setor registrou uma queda de 85%, de R$ 71 bilhões para R$ 10,6 bilhões.