A saga do Erval, o fura-greve. Ele já mostrou sua lealdade aos patrões e sua carência em quarentena. Foi patinho feio dos poderosos da diretoria, escroto-mor até com sua prole, se gabou de ser “amigo de espião” e amargou pesadelos verde-oliva. Agora, ele descobre os dissabores da aposentadoria num país desgovernado que beira o colapso social
Por Rôney Rodrigues | Ilustração: Vitor Teixeira
O espelho do banheiro não é mais tão gentil, notou Erval, com anos de atraso. Não que o aposentado fora, algum dia, esbelto e bem-apessoado; mas aquela imagem nublada de vapor, refletindo um senhor enrugado, soturno, careca (e com uma protuberante barriga de chope) não revelava apenas o avanço da idade – mas também uma decrépita e desterrada vida. Era essa a aposentadoria que ele, integrante de uma das últimas gerações pré-reforma da Previdência, sonhara?
Em breve, ele completaria 67 anos. E, em vez de fulgor nos olhos e urgência em viver, a cabeça martelava sobre o que fizera de seus dias, as besteiras que falara e, pior, fizera. É, tudo se paga nesta vida — até os boletos da consciência, e pior quando eles vêm com anos de juros. Além disso, a situação financeira de Erval era tão penuriosa quanto seu incômodo reflexo no espelho: em vez de almejadas viagens ao redor do mundo, casa de veraneio, cervejinhas ao entardecer, novas paixões e aventuras instigantes como saltar de paraquedas e bungee jump, restava-lhe contar as moedinhas do pires para ir à padaria. Mas bem que poderia comemorar suas primaveras, reunindo pessoas queridas – sobrara alguma? – e, quem sabe, tentar sepultar as mágoas provocadas por sua intransigência bolsonarista, maucaratismo e furos em greves. Poderia convidá-las a seu restaurante italiano favorito, local de tantas memórias afáveis e tiramisu delicioso, pedir algumas garrafas de vinho…
Mas são tempos de austeridade, relembra, tentando espantar devaneios. Ao menos, é o que ouve alardear o Ministro da Economia, seu atual guru, agora que julga-se amadurecido, arguto (e duro) demais para pagar por lives surtadas de Olavo de Carvalho. Virá recessão brava pela frente, a solução (mágica), aprovada pelo Banco Central e recomendada por Chicago, é apertar o cinto. Nada de luxo, será preciso dinamizar a Economia (até a doméstica). E assim Erval fez: trocou sua devoção por carne e cerveja por macarrão (mais barato que o arroz) e Pitu. Na farmácia, os medicamentos para pressão, artrite e infecção urinária, por engov e antiácidos. O plano de um ar-condicionado, para aplacar o verão aterrador, por um ventiladorzinho de pilha. E assim, cortando seus “gastos sociais”, impôs a si mesmo um Teto de Gastos digno do impingido ao SUS. Mas, talvez assim, pudesse ao menos alugar o salão de festas do prédio, botar umas picanhas na brasa, encomendar alguns barris de chope trincando neste calor…
Mas não. Afinal, são tempos de cortes radicais no supérfluo, repetem os bastiões das finanças. E, até para uma singela festa, o dinheiro pode não alcançar. Será necessário radicalizar o conceito de vida ultraliberal – e Erval, portanto, decide adotar a Gestão Petrobrás: para “otimizar o portfólio”, liquida quase todo seu patrimônio. A poupança é torrada no Cassino Financeiro para Amadores (vulgo, day trade), vício da moda que adquiriu quando ficou fatigado de damas na praça, minecraft e grupos ultradireitistas no zap. Os móveis do apartamento, vendidos na OLX e no Mercado Livre – e a preços quase-simbólicos. Para que Smart TV e rack, avaliou, se poderia assistir tudo o que bem entendesse pelo celular? Por que manter geladeira e fogão se poderia comer pizza barata no almoço e na janta? Sofá e poltrona não seriam ostentação se as cadeiras da cozinha podem desempenhar, perfeitamente, a mesma função?
Chegou a hora da aguardada comemoração; não a imaginada, mas a possível. No apartamento desmobiliado, que mais parecia à espera de novo locatário, uma singela mesa comportava um rolo de papel toalha e coxinhas do Ragazzo. Bebidas seriam por conta dos convidados. São tempos de austeridade, justificou-se. Depenara confortos e anseios para que tudo ficasse pior. Sacrifícios são necessários, insite mentalmente o aposentado, como se quisesse se convencer. Uma, duas horas se passam. Familiares, amigos, conhecidos, petroleiros aposentados e tampouco os vizinhos aparecem. Apenas Erval e Betim, seu gato angorá, jazem naquela festa, ao som de flashbacks. A comida esfriou – e já se transforma naquela intragável pasta industrial, cujo esforço de requentar só intensificará o gosto de farinha – mas com uma pimentinha, pensa Erval, quem sabe… Mas a melancolia logo afasta o pensamento glutão. O celular vibra. É uma moça de telemarketing – quer empurrar-lhe um novo pacote de ofertas, com vários gigas, da “maior cobertura 4.5G do Brasil”. Mas o aposentado explica que usa só pré-pago – e que é seu aniversário e, portanto…
“Aniversário, senhor?”, prontamente a moça o interrompe. “Parabéns! Não quer aproveitar essa data para assinar o Claro Flex – assim, o senhor pode falar sem limites com toda a família e amigos em qualquer lugar do…”
Erval desligou – e foi buscar o molho de pimenta.