Como desmonte da Petrobrás torna o Brasil vulnerável aos impactos da guerra na Ucrânia

Contexto de instabilidade global evidencia impactos do desinvestimento e das privatizações; Petrobrás anunciou nesta quinta-feira (10) aumento na gasolina (18,8%), no diesel (24,9%) e no gás de cozinha (16,1%)

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Política de preços dos combustíveis aplicada por Temer e mantida por Bolsonaro deixa país suscetível às variações do mercado (Foto: Agência Brasil)

Por Daniel Giovanaz, especial para o Sindipetro-SP | Edição: Guilherme Weimann

Mais de 10 mil km separam Brasília (DF) de Kiev, capital da Ucrânia. Porém, os efeitos do conflito militar e das sanções contra a Rússia devem atingir em cheio a população brasileira.

As atenções estão voltadas, em primeiro lugar, para os combustíveis. Desde 2016, após o golpe contra Dilma Rousseff (PT), a Petrobrás adota o Preço de Paridade de Importação (PPI). Essa política atrela o valor cobrado nas refinarias a oscilações na cotação do dólar e do barril de petróleo no mercado internacional.

Entre 24 de fevereiro e 7 de março, o barril do tipo Brent, referência internacional, aumentou 30%, atingindo o nível mais alto em 13 anos.

O aumento de preços reflete a preocupação global com o fornecimento de energia no contexto da guerra. Como a Rússia é grande produtora e exportadora de petróleo, as sanções podem comprometer o abastecimento de dezenas de países. 

O avanço dos diálogos entre Ucrânia e Rússia provocou queda de mais de 12% na cotação do petróleo no último dia 9, mas os pronunciamentos dos dois lados sugerem que o fim da guerra está distante. Ou seja, o preço do barril pode disparar novamente, caso os acordos de cessar-fogo não sejam renovados.

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A segunda variável que compõe o PPI poderia compensar, em parte, as oscilações do petróleo. Ao longo de fevereiro, o dólar desvalorizou 4,78% em relação ao real, também devido às incertezas provocadas pelos conflitos na Ucrânia.

No último dia 7, em entrevista à rádio Folha, de Roraima, o presidente Jair Bolsonaro (PL) criticou a política de preços e prometeu buscar alternativas que não causem “sobressalto no mercado”. As ações da Petrobrás caíram 7% logo após aquela declaração.

A reação imediata dos investidores não é à toa. Graças ao PPI e à política de privatizações, o lucro da companhia chegou a R$ 106,6 bilhões no ano passado –  dos quais R$ 101,4 bilhões foram divididos entre os acionistas.

Com isso, nesta sexta-feira (10), a Petrobrás foi na contramão do discurso de Bolsonaro e anunciou aumentos no preço dos derivados nas refinarias: 18,8 para a gasolina; 24,9% para o diesel; 16,1% para o gás de cozinha.

Quem paga a conta

O combustível foi o vilão da inflação em 2021, ano em que a desaprovação de Bolsonaro cresceu 17 pontos percentuais, segundo a pesquisa Exame/Ideia. No acumulado dos doze meses, de acordo com dados disponibilizados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o valor da gasolina nos postos subiu 46,5%.

Coordenador técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), William Nozaki afirma que, em uma conjuntura tão instável, é difícil prever quando a cotação da moeda estadunidense e o mercado de petróleo voltarão aos patamares anteriores à guerra. A dificuldade de fazer esse tipo de prognóstico só reforça a insegurança da atual política de preços.

A adoção do PPI reflete uma escolha dos governos Michel Temer (MDB) e Bolsonaro: consolidar a exploração e exportação de óleo cru e desmontar os demais segmentos.

Não precisaríamos depender tanto da importação de derivados se a política de investimentos tivesse sido mantida

William Nozaki, coordenador técnico do Ineep

“Desde que a Petrobrás decidiu abrir mão do refino, da petroquímica, dos fertilizantes, do gás, da distribuição e de tantos outros ativos, aumentou a nossa dependência de importação”, resume Nozaki, mestre e doutorando em Desenvolvimento Econômico (IE-Unicamp).

“Nos últimos cinco anos, a importação de diesel no Brasil subiu de 9 mil m³ por dia para 13 mil m³. A de gasolina, saiu de 3 mil m³ para mais de 4,5 mil m³. Não precisaríamos depender tanto da importação de derivados se a política de investimentos tivesse sido mantida”, opina.

O investimento anual da Petrobrás saltou de US$ 6 bilhões, em 2003, para R$ 43 bilhões, em 2010. Esse patamar foi mantido até 2014, quando começou a despencar, chegando a apenas US$ 8,05 bilhões em 2020 – o menor patamar desde 2004. No ano passado, houve um aumento sutil, para US$ 8,77 bilhões.

Economista da subseção do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) na Federação Única dos Petroleiros (FUP), Cloviomar Caranine lembra que o Brasil tem capacidade de refinar quase 2,4 milhões de barris por dia, enquanto o consumo diário varia entre 2,6 milhões e 3 milhões de barris.

“O Brasil sempre importou diesel e gás de cozinha. Gasolina, não: ora a gente importa, ora produz o suficiente. A partir de 2009, o país viveu um período de crescimento econômico e passou a depender mais da importação de derivados”, observa.

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“Um estudo da ANP, em 2012, apontou que o Brasil precisaria de mais duas refinarias, com capacidade de 100 mil barris cada. Se tivéssemos seguido essa orientação, certamente viveríamos hoje um momento de menor dependência”, reforça o economista.

A onda de desinvestimentos e privatizações se acentuou a partir de 2015, em pleno avanço da operação Lava Jato. Em sete anos, conforme levantamento do portal UOL, a companhia vendeu R$ 243,7 bilhões em bens, por meio de 68 transações.

Entre agosto e novembro de 2021, a companhia se desfez da Refinaria Landulpho Alves (RLAM), em São Francisco do Conde (BA), da Refinaria Isaac Sabbá (Reman), no Amazonas, e da Unidade de Industrialização do Xisto (SIX), no Paraná.

Ao todo, oito das doze refinarias foram colocadas à venda.

Caranine ressalta que o desmonte do setor de refino de petróleo configura, em si, uma ameaça à soberania, mas chama atenção novamente para a política de preços.

“Mesmo que o Brasil ampliasse sua capacidade de refino, de nada adiantaria se as refinarias praticassem o preço internacional, com paridade de importação”, completa.

Agronegócio em xeque

Cerca de 85% dos fertilizantes usados no agronegócio brasileiro são importados. A Rússia responde por 23% desta demanda, e as sanções já preocupam os produtores brasileiros.

A alta dependência externa desse insumo também é consequência do desmonte da estatal petrolífera.

Em janeiro de 2020, a Fábrica de Fertilizantes Nitrogenados (Fafen) da Petrobrás em Araucária, Região Metropolitana de Curitiba (PR), fechou as portas após quatro anos de desinvestimentos. 

A unidade foi construída em 1982 e privatizada em 1993. Durante 20 anos, foi controlada por empresas como o Grupo Cargill-Bunge e o Grupo Vale.

“Nesse período, não houve nenhum investimento significativo para aumentar a produção, ou para termos maior eficiência. As empresas simplesmente usaram a estrutura construída pelo Estado”, relata Gerson Castellano, que trabalhou no setor de manutenção da unidade a partir de 2002 e foi demitido no contexto do fechamento.

Em 2013, a Petrobrás readquiriu a fábrica em Araucária – até então sob controle do Grupo Vale.

“Havia no governo Dilma um plano nacional para reduzir a dependência de fertilizantes. A Petrobrás, de cara, fez vários investimentos para recuperar a unidade”, lembra Castellano, hoje diretor da FUP. “O resultado foi imediato. Entre 2014 e 2015, tivemos recorde de produção, com  muita eficiência.”

Leia também: A questão dos fertilizantes para além da fertilização do solo

Após o golpe de 2016, durante a gestão do então presidente da Petrobrás, Pedro Parente, nomeado por Michel Temer, a companhia decidiu abandonar o setor de fertilizantes.

Além do fechamento da unidade de Araucária, foram arrendadas por dez anos as Fafen de Sergipe e da Bahia para a empresa privada Unigel.

“Quando resolveram fechar a Fafen-PR, demitiram todos os trabalhadores. A Petrobrás não quis absorver essa mão de obra especializada, e 70% deles foram recontratados pela Unigel, no Sergipe e na Bahia, pagando menos”, lamenta Castellano.

“Hoje, a Unigel estuda exportar amônia para outros países, em vez de transformá-la em ureia, para o mercado local. É uma empresa privada, por isso vai fazer o que dá mais lucro.”

Antes do golpe, a Petrobrás planejava construir fábricas de fertilizantes no Espírito Santo e em Minas Gerais. Ambos os projetos foram abandonados pelos governos Temer e Bolsonaro.

Para completar, em 4 de fevereiro, a companhia vendeu a Unidade de Fertilizantes Nitrogenados III (UFN3), em Três Lagoas (MS), com obras 83% concluídas, para o grupo russo Acron. Os ataques da Rússia à Ucrânia começariam duas semanas depois, trazendo consigo o fantasma das sanções.

A ministra Tereza Cristina, da Agricultura, admitiu em entrevista coletiva no último dia 2 que o Brasil errou ao fechar suas fábricas de fertilizantes. Isso não significa que os latifundiários terão prejuízos: a conta será paga pelos consumidores.

“O agronegócio, infelizmente, não tem preocupação com a soberania, e simplesmente agregará o custo do fertilizante ao valor final de sua produção”, observa Castellano. “Quem vai sofrer é o povo.”

Na contramão

William Nozaki afirma que a atual gestão da Petrobrás coloca o Brasil na contramão das principais economias do mundo.

“Os temas de segurança e transição energética têm ocupado espaço central na agenda dos países desenvolvidos e emergentes”, observa. “A preocupação é sempre garantir a segurança de abastecimento para seus mercados internos. Isso está ocorrendo na França, na Alemanha, nos Estados Unidos, na Rússia, na China, na Índia”, lista o pesquisador.

A maior parte dos investimentos em energias renováveis no mundo vêm justamente da indústria do petróleo.

“A gente sabe que o gás natural e o petróleo ainda terão um papel muito relevante. O Brasil, assim que alcançou um grau de produtividade e rentabilidade significativo, por exemplo, nas bacias do pré-sal, abriu mão de internalizar esses ganhos competitivos”, analisa Nozaki.

Na visão dele, a privatização da Eletrobrás, em andamento, explicita a falta de planejamento energético do governo brasileiro. O coordenador técnico do Ineep reforça que os próximos meses serão de pressão inflacionária crescente, e que o país está cada vez mais desguarnecido. 

“Todo esse cenário, com a guerra na Ucrânia, cria um ambiente de subida no preço das commodities e de inflação na economia internacional. Isso deve pesar ainda mais sobre as duas variáveis que já estão alavancando os preços por aqui: os alimentos, por conta dos fertilizantes, e a energia, por conta do PPI”, finaliza.

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