Em entrevista, economista Marilane Teixeira aponta que medida não irá melhorar atendimento à população
Com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara dos Deputados e de Rodrigo Pacheco para a presidência do Senado (DEM-MG), apoiados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), as reformas defendidas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, devem virar prioridade no Congresso.
No topo da agenda deve estar a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) n° 32, encaminhada em setembro de 2020 pelo governo e que acaba com a estabilidade da maior parte dos servidores, elimina a necessidade de concursos para vários setores, reduz o número de carreiras e de direitos, além de diminuir o salário inicial dos concursados.
Em entrevista sobre o tema, a economista, doutora e pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit/IE/Unicamp), Marilane Teixeira, aponta porque considera um erro observar a reforma como uma medida de aprimoramento dos serviços públicos prestados no Brasil e destaca que ela pode enxugar o Estado num momento em que ele se faz mais necessário.
Quais impactos a PEC da reforma administrativa trará para os trabalhadores e para a população e qual o ritmo de votação você acredita que ela terá no Congresso?
Marilane Teixeira – O Congresso é muito fisiologista, nunca se sabe ao certo o que está sendo negociado nos bastidores ou em que termos foram acertados os apoios para a eleição dos dois aliados do presidente. Mas, provavelmente, uma das contrapartidas é a votação das reformas que estavam paralisadas desde o ano passado, especialmente a PEC 32, que exige foro qualificado porque altera a Constituição. Como foi apresentada em ano eleitoral, nenhum congressista tinha interesse em fazer a discussão da reforma administrativa, muitos deles eram candidatos.
E, além dela, temos as outras PECs que foram apresentadas no final de 2019, a 186, 187 e a 188 (propostas que tratam da contribuição dos servidores para um fundo público, do pacto federativo e da revisão dos fundos públicos). Além da reforma tributária, que recebe muita pressão, principalmente dos setores industriais.
Junto com o auxílio emergencial, essa é uma agenda que o governo considera urgente para que dê condições de sustentação política.
Para a sociedade, a reforma administrativa ainda é uma incógnita, a população em geral tem pouca clareza sobre o impacto que promoverá e tende a comprar a ideia, que o governo sustenta, de melhoria da qualidade dos serviços, da garantia de condições orçamentárias e financeiras do Estado, da aproximação do serviço da realidade do país e da possibilidade de desengessar os investimentos públicos, além de acabar com o que entende ser excesso de servidores.
Argumentos que já foram desmentidos por órgãos como o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada) e o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socieconômicos), que mostram que o Brasil é um dos países em que o total de servidores públicos nas três esferas, percentualmente em relação às pessoas ocupadas, é um dos menores em relação a outros países com características muito semelhantes.
Ao acabar com a estabilidade, diminuir concursos e criar muito mais requisitos para evoluir dentro da carreira, a PEC, que é para os servidores públicos o que a reforma trabalhista foi para o setor privado, enfraquece, ao invés de fortalecer e modernizar o serviço público justamente num momento em que eles se mostram essenciais. A forma de admissão e a estabilidade no emprego não são os problemas para as reclamações pela qualidade do atendimento.
Ao fragilizar as formas de contratação, vai subordinar ainda mais esse trabalhador. Atualmente, independente de quem está no governo, esse servidor não sofre as pressões de quem é o prefeito, governador ou presidente. Tem autonomia e independência para exercer sua atividade. O que estão propondo, vai inverter isso, porque as novas formas de contratação, inclusive com a condição de trabalho temporário por três anos para assumir cargos típicos do Estado, pode fazer com que o funcionário fique receoso em perder seu emprego, fique refém de quem é o governo de plantão.
Qual o impacto que o enxugamento no número de servidores terá?
Marilane – Com a redução do acesso por meio de concurso, tendemos a ter uma completa privatização do Estado, inclusive em serviços essenciais dos quais não poderia abrir mão. Até 26% dos servidores federais vão se aposentar até 2022 e 40% dos atuais deixarão as esferas públicas até 2030. Sem garantias de reposição. E se houver reposição, em 10 anos, os trabalhadores do setor já estarão sob a nova legislação, com elevação do número de vulnerabilidade e piora no próprio serviço público. Com a mudança da forma de contratação, acabando com vínculo único, pode haver também proliferação de algo que já ocorre hoje na saúde e na educação, esse trabalhador ter outros vínculos de trabalho, que faz com que o nível de comprometimento seja menor para dar conta de diferentes jornadas. Isso tudo sob a tese de que os gastos estão engessados. É desmontar o serviço público e transformar em algo com a cara do Guedes (Paulo Guedes, ministro da Economia).
O que uma reforma interessada em melhorar a qualidade dos serviços públicos deveria trazer?
Marilane – A má qualidade dos serviços tem como principal fator a falta de investimento em aparelhos públicos. Se a população não consegue acessar o sistema de saúde, não porque é porque o funcionário é desatento ou não faz o trabalho direito, mas sim porque não há capacidade ilimitada de pessoal e aparelhos, tanto equipamentos quanto locais, para atender a demanda.
Frente a investimentos baixos, temos de fazer justamente o contrário do que o governo propõe. Investir muito mais na rede de serviço e contratação e melhorar as condições de trabalho. Dar a mesma condição a uma enfermeira, a um professor, do que se dá a um juiz ou a um desembargador, que não sofrerão qualquer impacto com a aprovação da reforma. A PEC atinge, prioritariamente, quem recebe até três salários-mínimos. Quantas vezes você pega um holerite líquido de um professor e o salário é R$ 700?
O que precisamos fazer é uma discussão em relação às carreiras, há um fosso enorme entre quem está no topo e na base da pirâmide e precisa existir uma aproximação. Precisamos investir no servidor e no serviço para aumentar e não diminuir a oferta.
As soluções precisam ser pensadas, inclusive, em conjunto com as entidades que representam os trabalhadores, ouvir onde estão as demandas, queixas e não apresentar uma reforma de cima para baixo que nada mais é do que privatizar o sistema público.
O servidor público estatutário sem carteira já é uma realidade. Quando a gente olha para os dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra e Domicílios) do terceiro trimestre de 2020, os mais recentes que temos, havia 2,273 milhões de empregados no setor público sem carteira e 1,148 bilhão com carteira. Na prática, excluindo os estatuários e militares, um terço do serviço público é de empregados com ou sem carteira e pode ser dispensado a qualquer momento e ter remuneração muito inferior do estatutário. Já há um processo enorme de precarização.
O Brasil ratificou a convenção 151 da OIT em 2010, mas muitas vezes, há casos em âmbitos municipais, estaduais e federal de descumprimento, que levou o país, inclusive, a ser denunciado. A PEC apresenta barreiras para a negociação coletiva e impede que os acordos determinem estabilidade de emprego. Você acredita que essa norma estrangulará ainda mais o diálogo entre empregados e empregadores?
Marilane – Sem dúvida. Ratificar não é o suficiente, depois precisa internalizar na legislação do país e fazer com que se efetive na prática. Somos signatários de uma convenção que criminaliza o trabalho escravo e, somente na semana passada, 110 pessoas foram tiradas de situações análogas à escravidão numa operação do Ministério Público Federal e dos auditores fiscais do trabalho.
Essa PEC vai arrefecer o diálogo, principalmente, num governo como esse que não tem nenhum processo de abertura e de negociação com o serviço público e entidades de representação.