Privatização da BR Distribuidora tornou recorrentes os “repasses antecipados” e aumentos exorbitantes da gasolina e do diesel em municípios de difícil acesso
Por Daniel Giovanaz, especial para o Sindipetro-SP | Edição: Guilherme Weimann
No último dia 10 de março, viralizaram nas redes sociais imagens de postos de combustíveis no Acre vendendo gasolina acima de R$ 10. Era um prenúncio do reajuste de 18,8%, anunciado no mesmo dia pela Petrobrás, mas que passaria a valer apenas a partir do dia seguinte, 11 de março. O diesel subiu 24,9%, e o gás de cozinha, 16,1%.
O aumento do valor cobrado nos postos, imediatamente ou mesmo antes de ser aplicado o reajuste nas refinarias, não é exclusividade dos acreanos.
No Mato Grosso do Sul, o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) identificou casos em que as distribuidoras se negaram a vender combustível para os postos com o preço antigo, antes da confirmação do reajuste, ou ofereceram “gasolina velha” com valor já reajustado.
Abusos semelhantes foram registrados em outros seis estados. Só no Paraná, o Procon notificou dez distribuidoras privadas por essa prática.
A reportagem entrou em contato com o Sindicato do Comércio Varejista de Combustíveis Derivados de Petróleo, Gás Natural, Biocombustíveis e Lojas de Conveniência do Paraná (Paranapetro), que reportou os casos aos órgãos fiscalizadores e à imprensa.
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“Desde que a Petrobrás anunciou o sistema de paridade de preços [PPI], em 2017, as distribuidoras têm adotado essa prática: repassam as altas com grande agilidade, muitas vezes de imediato, enquanto demoram para efetivar as baixas – e muitas vezes não o fazem na íntegra”, informou o sindicato paranaense.
O PPI foi adotado em outubro de 2016, pelo governo Michel Temer (MDB). O ano seguinte, citado na resposta do Paranapetro, coincide com o início da capitalização da BR Distribuidora, então subsidiária da Petrobrás.
Criada em 1971, a empresa mudou de nome para Vibra Energia em agosto de 2021, quando deixou de ser controlada pelo Estado, já no governo Jair Bolsonaro (PL).
Na época, o mercado de distribuição de combustíveis no Brasil era hegemonizado pela estatal BR (entre 25 e 27%) e por duas empresas privadas: a Ipiranga (entre 18% a 20%) e a Raízen, uma sociedade entre Shell e Cosan (cerca de 17%).
Sete meses depois, esse oligopólio continua responsável por cerca de 2/3 do mercado, mas a substituição da BR Distribuidora pela Vibra Energia significou uma mudança qualitativa, com prejuízos ao consumidor. É o que explica o economista Marcelo Simas, que trabalhou 22 anos na Petrobrás e atuou no setor financeiro da BR Distribuidora.
“O grande objetivo da Petrobrás sempre foi garantir o abastecimento nacional e contribuir com o desenvolvimento do Brasil. Isso estava no seu DNA, e a BR Distribuidora era o braço que fazia chegar combustíveis no país inteiro. Com a privatização, infelizmente, isso se perdeu”, lamenta.
Com o preço nas alturas, trabalhadores ribeirinhos que precisam se deslocar de barco pelos rios sinuosos da Amazônia já relatam dificuldades de manter sua renda com o extrativismo.
“As empresas privadas querem o ‘filé mignon’, enquanto a BR estava em lugares onde ninguém tinha interesse em estar, porque dão menos lucro. É claro que o lucro da BR era percentualmente menor que o da Shell e o da Ipiranga, justamente porque ela tinha essa visão social. Se não fosse assim, muitos moradores do Norte e Nordeste não teriam combustível”, completa Simas.
Isso não significa que a subsidiária da Petrobrás estivesse no vermelho. No primeiro trimestre de 2019, ainda sob controle estatal, o lucro líquido da empresa cresceu 93,1%, enquanto o endividamento líquido caiu 30,5% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Nada estratégico
Os postos com a bandeira BR espalhados pelo país eram a face mais conhecida da estatal. Porém, a maioria deles já eram terceirizados antes dos governos Temer e Bolsonaro: os investimentos da empresa se concentravam no setor de distribuição, etapa intermediária entre o refino do petróleo e a venda de derivados ao consumidor final.
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A Petrobrás, como as maiores petroleiras do mundo, apostava em um modelo de integração vertical, “do poço ao posto” – ou “do poço ao poste”. Nos últimos cinco anos, esse encadeamento foi comprometido não só pela venda da BR, mas pela privatização de refinarias, campos de petróleo e gasodutos.
O caso do Acre, descrito na abertura da reportagem, é emblemático para se compreender os impactos na distribuição dos combustíveis. No dia 11 de março, no município de Jordão, a 636 km da capital Rio Branco, o preço da gasolina chegou a R$ 11,56, o mais alto cobrado no país.
Ao contrário do que alegam Bolsonaro e seus apoiadores, não se trata de um problema tributário. Em levantamento de 2021, o Acre aparecia apenas em 21º na lista de estados onde o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) mais impacta sobre o preço final da gasolina.
Dentre os possíveis efeitos da privatização da BR, o aumento do valor cobrado dos consumidores de regiões isoladas era o mais previsível.
“Não há indicadores claros de que a privatização vai aumentar a concorrência e reduzir preço, por se tratar de um mercado oligopolizado. Em locais mais distantes, onde o custo é mais alto, o preço tende a subir”, previu o pesquisador Eduardo Costa Pinto, do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep), durante webinário sobre o tema em julho de 2021.
“A lógica de uma empresa estatal, no caso do refino e da distribuição da Petrobrás, era alcançar justamente lugares onde seria inviável o abastecimento, em termos de escala e custo”, acrescentou.
Marcelo Simas, ex-funcionário da BR, lembra que havia esforço da empresa pública para não repassar todos os custos de distribuição aos consumidores dessas regiões, evitando preços impraticáveis e viabilizando o abastecimento.
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O argumento central da Petrobrás, ao privatizar a BR, era concentrar investimentos na produção de petróleo, que supostamente teria maior rentabilidade que as demais etapas.
Costa Pinto questionava esse pretexto já em 2021, lembrando que o preço do petróleo oscila constantemente – afetado, por exemplo, por oferta e demanda, questões geopolíticas e de segurança energética. Em momentos de queda no valor do barril, segundo o especialista, o preço dos derivados demora mais a cair, e a participação da petrolífera no refino e na distribuição garantiria margem sobre qualquer valor, mitigando riscos.
“Grandes empresas perceberam isso, portanto mantêm a integração ‘do poço ao poste’, que garante maior rentabilidade de longo prazo”, ressaltou o pesquisador do Ineep durante o webinário.
Ao privatizar a BR, a holding Petrobrás perdeu não só uma fonte de receita, mas também um ativo com capacidade de fomentar a concorrência no setor. Por seu caráter estatal, a subsidiária podia operar com margens de lucro menores, estimulando concorrentes a reduzirem preços em contextos específicos.
Simas reforça que o encarecimento do combustível em municípios isolados ou de difícil acesso é resultado direto da lógica privatista que tomou conta da Petrobrás.
“Eu tive a oportunidade de estar na ‘cabeça do cachorro’, em São Gabriel da Cachoeira [AM], fronteira com a Colômbia, e a BR estava lá, abastecendo populações ribeirinhas. Enquanto isso, a Ipiranga e a Shell focam nas regiões Sudeste e Sul, que são mais lucrativas”, ressalta o economista.
“Sempre que há um novo reajuste, as distribuidoras privadas e revendas querem capturar um pedacinho dessa margem. Elas estão interessadas no lucro. Então, quando a Petrobrás sonha em aumentar o preço, isso já chegou antes para o consumidor. Mas, quando é para baixar, demora meses.”
Reajustes antecipados
Ao aumentarem os preços antes mesmo do reajuste oficial, distribuidoras, revendedoras e postos podem estar reagindo a uma tendência iniciada em 2016, com a adoção do PPI e a posterior privatização de refinarias.
O gráfico abaixo, produzido pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) a partir dos dados mais atualizados da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) divulgados pelo Ministério de Minas e Energia, mostra queda de 8 pontos percentuais na margem de distribuição, custo de transporte e margem de revenda de gasolina entre 2017 e 2021.
“A refinaria aumenta o preço, e na composição do preço final, aumenta sua margem. Quem perde, nesse primeiro momento, são os atravessadores. Depois, quando esse preço para de subir e fica, por um longo período, estabilizado, os outros setores vão acomodando e aumentando sua margem”, explica Cloviomar Caranine, economista da subseção do Dieese na Federação Única dos Petroleiros (FUP).
O pesquisador lembra que o gráfico apresenta uma média nacional, portanto os dados podem variar conforme o município ou região.
“Quanto maior a concorrência entre os postos – teoricamente, sem considerar os cartéis –, maior a dificuldade que ele vai ter de repassar e aumentar sua margem. No interior, em cidades mais distantes, além do frete maior, tem menor concorrência, e as margens tendem a ser maiores”, exemplifica.
Dirceu Salvador* trabalha há quatro anos como representante comercial de uma empresa Transportador-Revendedor-Retalhista (TRR) no interior de São Paulo. A sigla designa estabelecimentos autorizados pela ANP a adquirir combustível a granel em grande quantidade.
“Até um ano e meio, dois anos atrás, sempre que havia um reajuste [da Petrobrás], a gente recebia um comunicado informando o percentual. Era tudo muito transparente”, relata Salvador, que atua na revenda de diesel.
“Aparentemente, quando houve a privatização e a BR se tornou Vibra Energia, acabou essa transparência. Os aumentos são mais recorrentes, sem nenhum tipo de comunicado.”
O representante comercial cita como exemplo o reajuste anunciado pela Petrobrás no último dia 10.
“Nos três primeiros dias da semana, a partir de segunda [7], antes do aumento na refinaria, as distribuidoras já haviam repassado o reajuste. Na segunda, R$ 0,16; na terça, mais R$ 0,06; na quarta, R$ 0,23; e na quinta, o aumento de quase R$ 0,90 da refinaria”, afirma.
“Como isso não é publicado em lugar nenhum, o cliente nos questiona. E, quando a gente pede à distribuidora um comunicado do aumento, eles não enviam”, completa.
O maior acionista individual da Vibra Energia é o Samambaia Master Fundo, do ex-banqueiro e ex-tesoureiro do PSDB, Ronaldo Cezar Coelho, com 9,79%. Em 2017, Coelho confessou ter recebido recursos da empreiteira Odebrecht no exterior direcionados à campanha presidencial de José Serra (PSDB), sete anos antes.
Ao todo, são mais de dois mil investidores institucionais e cerca de 60 mil pessoas físicas na lista de acionistas.
Outro lado
O Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo (Sindipetro-SP) entrou em contato com as distribuidoras Vibra Energia, Ipiranga e Raízen e expôs as informações obtidas pela reportagem.
A assessoria de comunicação da Vibra Energia informou que a empresa não comentará o caso. As demais empresas não responderam até a publicação deste texto.
A reportagem também entrou em contato com a Federação Nacional do Comércio de Combustíveis e de Lubrificantes (Fecombustíveis), formada por 34 sindicatos patronais, que representa 40 mil postos revendedores de combustíveis, 300 TRRs e 57 mil revendedores de GLP. Também não houve resposta no prazo estipulado pela reportagem.
O texto poderá ser atualizado, após a publicação, caso as empresas e a federação citadas enviem seus posicionamentos.
*Nome fictício. Entrevistado preferiu não ser identificado no texto para evitar retaliações.