Pedro Luiz de Campos, o Pedrinho, fez parte da histórica diretoria do Sindipetro cassada na greve de 1983, durante a ditadura; posteriormente, foi um dos pilares na luta pela anistia dos demitidos
Por Guilherme Weimann
Na ocasião do seu aniversário de 90 anos, o poeta amazonense Thiago de Mello versou uma espécie de epitáfio: “Como quem reparte pão, como quem reparte estrelas, como quem reparte flores, eu reparto meu canto de amor. Com uma estrofe apenas, eu me despeço – para permanecer com vocês. Me despeço para permanecer”.
Cinco anos depois, em 2022, um dos maiores escritores brasileiros faleceu. Além dessa despedida lírica, deixou uma obra vasta, com destaque para a defesa das florestas e a oposição ferrenha à ditadura militar – com uma produção marcada pelos anos no exílio, vivido em diversos países.
Em período semelhante, Pedro Luiz de Campos construiu seu maior legado do ponto de vista coletivo, político e social. E, diferentemente do poeta, Pedrinho – que às vezes até se enrolava com as palavras, devido à ansiedade pela ação – lutou contra os militares no chão de fábrica, mais especificamente na maior refinaria da maior empresa do país.
Em julho de 1983, quando os trabalhadores da Refinaria de Paulínia (Replan), da Petrobrás, cruzaram os braços, Pedrinho estava na diretoria do Sindipetro de Campinas, na época dirigido pelo então líder sindical Jacó Bittar – que anos mais tarde viria a se tornar o primeiro prefeito de Campinas eleito pelo Partido dos Trabalhadores (PT).
Pedrinho não foi o cara do microfone, não teve suas fotos estampadas no jornal, mas desde o princípio se colocou como uma das figuras de sustentação da primeira greve petroleira do país. Uma greve que, para ele, nunca terminou – já que a construção e reconstrução da sua memória tem sido realizada desde então, ao longo das últimas quatro décadas.
“A memória é a recordação de coisas boas. Mesmo que nós tenhamos levado um ferro lá atrás, você tem que reconstruir essa memória. Então daquela perda que tivemos, em 1983, nós tivemos uma série de conquistas [posteriores] e conseguimos manter a memória da luta sempre viva. Foi uma luta que quisemos lutar, provamos que estávamos certos e não podemos deixar [essa memória] parada”, afirmou na véspera dos 40 anos desse episódio histórico do movimento sindical brasileiro.
No período desse depoimento, Pedrinho estava engajado no que parecia ser também a sua despedida – mesmo que para todos do seu entorno parecia impensável. Organizou um evento que contou tanto com os grevistas de 1983, da Replan e também da Refinaria Landulpho Alves (Bahia), como também com petroleiros da ativa.
“Você tem que comemorar a memória: um ano, dois anos, 40 anos. Você não está só memorizando, você está tentando passar para outras pessoas que a luta continua. Nosso lema, desde lá atrás, sempre foi: ‘a luta continua!’. A memória para mim tem sabor de mudanças e atualizações. Não podemos parar. Da memória daquele tempo, você tem que desdobrar em outras memórias hoje”.
E a luta, assim como a sua memória, continua. Mesmo após a sua morte prematura, em novembro de 2023. Das perdas durante a ditadura militar, vieram as conquistas democráticas. Dos reveses da greve dos petroleiros de 1983, consolidaram-se uma robusta gama de direitos para a categoria – que perduram até hoje.
Diferenças à parte, as semelhanças são evidentes entre esses dois personagens. Tanto Pedrinho como o poeta Thiago de Mello sempre fizeram questão de fazer de suas lutas uma memória viva “Para os que virão”:
“Como sei pouco, e sou pouco,
faço o pouco que me cabe
me dando inteiro.
Sabendo que não vou ver
o homem que eu quero ser.
Já sofri o suficiente
para não enganar a ninguém:
principalmente aos que sofrem
na própria vida, a garra
da opressão, e nem sabem.
Não, não tenho o sol escondido
no meu bolso de palavras.
Sou simplesmente um homem
para quem já a primeira
e desolada pessoa
do singular – foi deixando,
devagar, sofridamente,
de ser, para transformar-se
– muito mais sofridamente –
na primeira e profunda pessoa
do plural.
Não importante que doa: é tempo
de avançar de mão dada
com quem vai no mesmo rumo,
mesmo que longe ainda esteja
de aprender a conjugar
o verbo amar.
É tempo sobretudo
de deixar de ser apenas
a solitária vanguarda
de nós mesmos.
Se trata de ir ao encontro.
(Dura no peito, arde a límpida
verdade de nossos erros.)
Se trata de abrir o rumo.
Os que virão, serão povo,
e saber serão, lutando.”
Trajetória
“O cara veio me perguntar se eu me considero de esquerda, você acredita?”, contou Pedrinho, em tom de brincadeira, ao seu amigo de longa data, Antônio Jesus Alencar Ferreira, ao comentar sobre a entrevista que acabara de conceder ao projeto Memórias, no dia 18 de abril de 2023.
E sua resposta, com a câmera ligada, ajuda a entender um pouco de como foi a sua atuação política: “Tem que ser questionador. Questionar algumas coisas que vai na somatória ajudar a comunidade, ajudar os trabalhadores de uma fábrica, por exemplo. Então esse negócio de ser esquerda, direita… Tem cara que é de esquerda, vamos supor, vota no Lula, mas depois fica quietinho, não fala nada. Mesmo se o governo estiver ruim, não fala nada. Ele pensa: ‘ganhou, tá bom, não sendo outro, tá bom’. Eu acho que não é assim, acho que temos que questionar também. Tudo que achar que não está na direção certa, tem que questionar”.
Esse espírito contestador, inclusive, tem origem no berço: “Meu pai era questionador, igual eu sou, sei lá, gosta de questionar. Para o bem coletivo, não só coisas individuais. Se for a tendência mesmo, era centro-esquerda. Mas ele já questionava, o que ele trabalhava, o que era bom, o que não era”.
Pedro de Campos, assim como Pedrinho, era operário, ferroviário da Mogiana. Sua mãe, Geni do Carmo Santos de Campos era doméstica. Do casal, vieram nove filhos. Pedrinho é justamente o do meio, nascido no dia 21 de junho de 1954, na cidade de Campinas.
Morou na infância nos bairros São Bernardo e Parque Industrial, época em que se apaixonou pelo futebol: “Eu morava em frente a um campo. Ia à escola e a primeira coisa que ia fazer quando voltava era jogar bola. Aí meu pai cobrava, falava que não, mas a gente gostava, não tinha jeito. E a maioria da molecada que estava lá queria jogar bola. Então peguei essa infância boa de futebol. Não aprendi muito, mas ainda jogo”.
E jogou, literalmente, até quando o corpo aguentou. Na véspera de ser internado no hospital, antes de sua morte, foi pela última vez ao Quinta Total, pelada de futebol que ajudou a fundar junto com outros colegas, e que reunia trabalhadores da ativa e aposentados da Replan.
Mas, voltando aos primórdios, vale destacar a oportunidade que teve de jogar no seu time do coração: “Eu fui para o Guarani porque antigamente no [colégio] Vitor Meirelles tinha um campeonato intercolegial. A minha turma participou e jogou a final lá no Guarani. O diretor do Guarani gostou da turma, chamou meia dúzia para começar a treinar. Treinei quatro meses, daí meu pai falou: ‘Você que sabe, ou vai para o SENAI, ou vai para rua’. Acabei indo para o SENAI, onde me formei mecânico eletricista. E também me formei em eletrotécnico pelo COTUCA [colégio técnico ligado à Unicamp]”.
Logo após se formar, em 1971, teve seu primeiro emprego na General Electric (GE). Quatro anos mais tarde, passou no concurso da Petrobrás, empresa na qual sempre sonhou em trabalhar: “Fui para o setor de Utilidades. “Primeiro dia de refinaria foi, se eu falar pra você… foi péssimo! Porque meu grupo era de 80 operadores. Eu trabalhava na GE ainda, daí o RH [setor de Recursos Humanos] foi lá e falou: ‘Quem está trabalhando, pede para dar baixa na carteira que vocês vão ser admitidos’. Aí no outro dia fui pedir demissão [da GE], contei que estava fazendo o curso e iria ser admitido. O cara nem enfiou negócio de aviso prévio. Daí no dia 5 de dezembro de 1975, todo mundo feliz lá, veio uma contra ordem que não iriam contratar mais ninguém. Puta vida…! Daí nós ficamos…”.
Foi então que Pedrinho participou do seu primeiro movimento sindical dentro da Petrobrás, logo no seu primeiro dia de trabalho: “Já falamos de cara: ‘Vamos fazer um movimento! Vamos pegar um ônibus e vamos para o Rio, explicar o que está acontecendo aqui’. Daí o próprio cara do RH recuou: ‘Não, espera um pouco mais, nós vamos ligar para o Rio de Janeiro’. Sei que naquele dia mesmo à tarde veio a solução e nós fomos admitidos”.
Apesar da precocidade em se organizar, demorou alguns anos para entrar efetivamente no sindicato: “Em 1982, o Demétrio [Vilagra, ex-prefeito de Campinas] falou: ‘O Jacó [Bittar] está querendo fazer uma chapa bem equacionada, com diretores de todos os setores, de todas as unidades, o máximo que puder, e eu indiquei seu nome’. E eu falei: ‘Mas onde é?’. Daí ele me levou, não era aqui, era no Cambuí [o sindicato], depois veio para o Botafogo. Foi a primeira vez que conversei com o Jacó pessoalmente e daí ele falou: ‘Realmente eu quero isso aqui, se você puder’. Entrei em março de 1983, olha para você vê… Em julho já veio a greve. Então acho que a diretoria que menos teve tempo de atividade foi a nossa”.
A greve
A história da greve de 1983, do ponto de vista coletiva, foi recontada recentemente por meio de um documentário e de uma exposição, digital e física, lançada no marco do aniversário de 40 anos de sua realização, em julho de 2023.
Por isso, aqui, a greve será citada a partir da perspectiva mais individual – o que indubitavelmente também se refletirá na perspectiva coletiva – do então diretor de base, Pedrinho: “Eu era diretor novo, mas já estava lá [na Petrobrás] há 8 anos. Realmente eram decretos em cima de decretos, só prejudicando trabalhadores, então eu tinha certeza de que alguma coisa iria acontecer. Então, para mim, não foi novidade. Sabia que a base estava unida politicamente e todos esperavam que a greve iria sair”.
E saiu, mas a reação da ditadura foi implacável: “Eu sabia que a greve iria trazer punições, tinha certeza. Eu particularmente já tinha conversado com a minha esposa. Falei para ela: ‘Vai ter consequência’. E não deu outra! Começou a greve, no primeiro turno, a diretoria já estava afastada, depois cassada, sem direito a salário, sem direito a assistência médica. Como eu já tinha um pouco de reserva, a gente foi levando, mas também foi muito difícil. E daí começou meu movimento, falei: ‘Bom, agora eu vou pra valer. Não vou parar nisso, porque tem um monte de gente demitida, diretoria dissolvida’.”.
O saldo da greve foi de 206 demitidos na refinaria da Bahia e 152 em Paulínia, incluindo Pedrinho. Foi a partir daí que se iniciou tanto um movimento político, para o retorno dos demitidos, como também de solidariedade entre os trabalhadores. Do ponto de vista político, destaca-se a realização do Show VemSer, realizado no dia 20 de setembro de 1983 no Ginásio do Taquaral, em Campinas, com a participação de diversos artistas, como Gonzaguinha, Jards Macalé, Língua de Trapo, Jorge Melo, Zeza Amaral, Grupo Chaski e o jogador do Corinthians, Walter Casagrande. Os recursos foram doados às famílias dos demitidos.
Do ponto de vista mais pessoal, a jornada foi um pouco mais dura: “Quando a gente ficou desempregado, tinha a famosa lista. Por causa dela, a gente não conseguia serviço em lugar nenhum. Mas um conhecido me indicou para um trabalho na Citrosuco, em Limeira. Como eu não tinha carteira, porque estava retida na Petrobrás, acabei tirando outra. Aí fui lá, fiz exame médico, entrevista. Marcaram um dia para eu começar, acho que uma quinta-feira, cheguei de manhã… Falei para minha mulher ‘Bom, vou começar a trabalhar então’. Fui lá, cheguei, o supervisor veio, me atendeu, me levou até a caldeira. Aí todas as perguntas que ele fazia, eu respondia. Ele falou: ‘Não é possível que você não trabalhou em lugar nenhum ainda com caldeira’. Aí eu caí na bobagem de falar: ‘Não, eu trabalhei já, de alta pressão’. Daí a tarde, a hora que fui bater o cartão para ir embora, meu cartão não estava mais lá. Fui demitido no primeiro dia”, recordou com lágrimas nos olhos.
Mas, dessa dor, surgiu uma experiência que marcou a vida cultural e política campineira, o Bar Resistência: “Por que não começa a se reunir em um bar? A gente faz um bar, que vai ajudar a gente a saber o que está acontecendo dentro da refinaria, também pode chamar a imprensa e outras categorias pra discutir a política atual. Essa discussão foi na casa do Edvaldo, o Frangão, que topou na hora junto com o Demétrio”. Das várias histórias do local, destaca-se o lançamento do livro Diário de um cucaracho, com a presença do autor, o cartunista Henfil – que deixou sua marca na parede do bar pintando sua personagem Graúna.
O bar durou até praticamente o retorno de Pedrinho e de outros demitidos à refinaria, em 1985, cerca de dois anos após o fim da greve. Na refinaria, permaneceu por mais 10 anos, até se aposentar, em janeiro de 1995, pouco antes de outra histórica greve da categoria, da qual participou já como aposentado.
Como saiu da Petrobrás ainda jovem, com 42 anos, decidiu se aventurar pelo ramo da revenda de combustíveis, junto com outros dois amigos, Alencar e Macarrão. Mas nunca deixou de estar presente no sindicato.
Por isso, a partir de um decreto do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2002, que abria a possibilidade de anistia, incluindo a reparação financeira de trabalhadores prejudicados por movimentos políticos durante a ditadura militar, Pedrinho se engajou com outros companheiros nessa batalha. Quando a anistia veio, também trouxe consigo a ressignificação da memória daquela greve: “Era a prova de que estávamos do lado certo”.
Desde então, se manteve presente no sindicato: “Para mim, sindicato é a minha casa”. Uma de suas casas, da qual também participava ativamente a sua outra casa, formada por esposa, filhos e netos.
Mas, apesar do carinho pelo sindicato, Pedrinho alertou no fim da entrevista: “Olha, eu gostaria de ser lembrado como um petroleiro, o sindicato fica para depois. Eu acho que tudo que você faz no sindicato é em prol do petroleiro. Então gostaria de ser lembrado como petroleiro, mais do que tudo como um petroleiro”.
E será, para sempre, lembrado como um grande petroleiro!