Migrante nordestino, Antônio Jesus Alencar Ferreira se formou em Economia na Unicamp e conduziu o Sindicato dos Petroleiros de Campinas na histórica greve de 1983
Por Guilherme Weimann
Em uma de suas frases mais célebres, Karl Marx afirmou que “os homens fazem sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias pelas quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”.
Apesar disso, é inegável que alguns conseguem driblar, no mínimo, com mais galhardia as circunstâncias que lhes são transmitidas. Esse, com certeza, é o caso de Antônio Jesus Alencar Ferreira, um garoto nascido no Sertão de Inhamuns, mais especificamente na cidade cearense de Aiuaba, no dia 11 de dezembro de 1948.
Filho de um lavrador e de uma dona de casa, Alencar – como apenas mais pra frente viria a ser conhecido – é o sexto de um total de sete filhos. “Naquela época, o pessoal tinha muito filho para ter braço para trabalhar na roça, porque a cidade dependia fundamentalmente da lavoura, não existe indústria até hoje naquela região, que é uma das mais secas do país”, explica.
E foi justamente pela seca que sua família decidiu seguir o caminho de outros milhares de conterrâneos e migrar para São Paulo. A maleta não era um saco, o cadeado não era um nó e o meio de transporte não era um pau de arara. Mas as condições não foram também muito melhores: “Eu fui um pouco mais privilegiado que o Lula, porque eu vim de ônibus, mas era aquele ônibus mais utilizado no transporte urbano, que tinha um ferro atrás. Quando o bicho dava um pulo, quando pegava um buraco, que a gente chama no Nordeste de catabí, a gente batia a cabeça no ferro. Foram oito dias nessa pegada, foi um negócio ‘brabo’, rapaz”.
Migrante
Mas apesar de penar, todos chegaram. E chegaram à cidade de Lins, no interior paulista, em 1960, onde a família possuía um tio estabelecido há alguns anos. E a partir daí todos os integrantes da família começaram a conviver com problemas que eram bem diferentes da seca, mas que também não foram fáceis de serem enfrentados.
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Alencar, um garoto de 11 anos, teve que encarar de frente a escola, que ainda não havia frequentado. Isso porque, até aquele momento, todos os seus estudos se resumiam a um professor particular chamado Tancredo, que utilizava um método bastante difundido na época: a palmatória.
“Eu e meu irmão, que era só um ano mais velho do que eu, fomos para o Grupo Escolar Dom Henrique Mourão. Ainda bem que, naquela época, não tinha esse negócio de bullying. Porque o bullying lá a gente resolvia na porrada. A gente tinha a desvantagem de ser discriminado por ser mais velho, além de nordestinos, mas também a gente tinha mais tamanho que o resto da moçada. Então quando vinham tirar uma com a gente, o pau comia. A gente barrou na marra o que hoje se conhece como bullying”, recorda Alencar.
Além disso, o menino que não levava desaforo pra casa acabou se destacando nos estudos e conseguiu tirar o atraso, pulando dois anos ao fazer a admissão e ingressar diretamente ao ginásio, que atualmente corresponde aos quatro anos finais do ensino fundamental (5º ao 9º ano). E foi aí que as circunstâncias – sempre elas – deram uma reviravolta na sua vida.
Seminarista
“Quando eu fui entrar pro ginásio, eu tinha um primo que estava estudando para padre aqui em Jundiaí. E o sertanejo é muito católico, e geralmente eles escolhem um da família pra ser padre. E como eu era o homem mais novo, minha mãe fez minha cabeça. Eu fui seminarista durante cinco anos, eu fiz o ginásio e o primeiro ano científico no seminário”, rememora.
E se a mãe fez sua cabeça para entrar no seminário, os padres fizeram sua cabeça para exaltar os ‘bons costumes’ e os militares: “Eu era despolitizado. No sertão do Nordeste, nem se discutia política, você só recebia a ordem de quem você deveria votar. Então eu acompanhei o golpe de 64, mas através do Estadão. Os padres, de uma maneira geral, eram de direita. Quando eu ia passar férias em Lins, lá tinha um bispo… pensa num cara reacionário, que falava explicitamente que em Cuba o governo retirava as crianças chorando do colo das mães para levar embora. Então naquele momento a igreja apoiava fortemente os militares, era extremamente reacionária”.
Trabalhador
E foi com essa cabeça que saiu do seminário para a batalha da vida. “O meu primeiro emprego foi de enfermeiro, em Lins. Eu consegui ser dispensado no Exército, devido a minha miopia. E um primo que era médico me arrumou um emprego de enfermeiro. Logo depois, minha família se mudou para o ABC, em Santo André, e aí eu fui junto”.
Em Santo André, conciliou os estudos do científico (que hoje é conhecido como colegial) e o emprego na Rede Federal de Armazéns Gerais Ferroviários (AGEF), que na época era uma empresa estatal. “Eu morava em Santo André e trabalhava em São Paulo, na Avenida Ipiranga, no escritório da AGEF. Na saída do trabalho, às 17h30, rapaz… o trem era terrível. Naquele tempo o pessoal fumava no vagão, eu cheguei a ter queda de pressão. Eu detestava Santo André, apesar de estar morando com a minha família”, reconhece.
Nessa rotina extenuante, Alencar ainda adicionou uma faculdade de Física, em Santo Amaro: “Eu saía do escritório, ia pra Santo Amaro, num ônibus lotadíssimo… E a sorte que eu tinha carona com o André, um alemão, que voltava de carro de Santo Amaro até Santo André. Assim mesmo eu chegava em casa meia noite e meia, comia alguma coisa, dormia, seis horas da manhã tinha que estar de pé de novo”.
Petroleiro
Foi nesse contexto que surgiu o concurso da Petrobrás, em 1971. “Eu prestei concurso e não era qualquer vestibular que estava à altura daquele concurso, que era muito difícil. Mas o seminário, queira ou não queira, me deu um aprendizado muito grande”, avalia. Por isso, não teve dúvidas em pegar as malas e voltar ao interior de São Paulo, dessa vez para Campinas, cidade vizinha à Refinaria de Paulínia (Replan), que só viria a ser inaugurada no ano seguinte, em maio de 1972.
“Primeiro eu fiz um cursinho para operador. Depois eu fui fazer estágio na RLAM [Refinaria Landulpho Alves, atualmente Refinaria de Mataripe], na Bahia, em fevereiro de 1972, durante três meses. Foi aí que eu coloquei o pé na lama. De volta à Replan, eu trabalhei no Tratamento Catalítico, que ainda estava em fase de montagem, a parte de tubulação estava tudo por fazer, por exemplo”, relembra.
Mas, apesar das circunstâncias, os vários anos de censura e despolitização imposta pelos militares reverberavam de forma predominante. “Politicamente, a gente era uma geração totalmente alienada. Porque você tinha um regime militar, que pra mim naquela altura do campeonato não queria dizer nada… Eu só queria arrumar um emprego, sobreviver. Para um migrante nordestino, passar na Petrobrás já era um feito. A gente não falava de política, muito menos de sindicato”, admite.
Marxista
Só que essa alienação encontrou um cenário diferente do que até então Alencar tinha vivenciado. Eram várias horas de turno ininterrupto de trabalho ao lado de outros petroleiros, num terreno fértil – ou quase de sobrevivência – para aflorar os sentimentos de solidariedade e companheirismo: “Pouca gente discutia política. Mas é o seguinte, se você fica à noite no zero hora, você começa a trocar ideia, a compartilhar… Eu, por exemplo, sempre levava jornal. E foi aí que começamos a discutir um pouco de política, mas meio devagar”.
Mas logo essas discussões ganharam uma outra dimensão: “Aí rapaz, tinha um cara que se chamava Goianinho. O nome dele era Luiz Inácio alguma coisa, não era Lula da Silva. O Goianinho tinha sido da Escola de Cadetes, mas ele saiu justamente porque ele lia muito Carlos Marques, ou Karl Marx. E ele nos influenciou muito. Discutíamos Karl Marx dentro da refinaria”.
Só que esse viés marxista não encontrava eco dentro do instrumento de representação da categoria. No dia 19 de agosto de 1973, a Associação Profissional dos Trabalhadores na Indústria de Destilação e Refinação de Petróleo nos Municípios de Campinas e Paulínia se transformou no Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Destilação e Refinação de Petróleo de Campinas e Região, o Sindipetro Campinas.
Os fundadores do sindicato foram, principalmente, trabalhadores vindos da Refinaria de Cubatão (RPBC), mais antiga e com histórico sindical consolidado na época. Suas principais lideranças eram Jacó Bittar e Francisco de Paula Garcia Caravante. “O sindicato ainda estava muito ligado à empresa, era praticamente um órgão burocrático do governo. E a gente já tava querendo discutir salários, que tavam sendo corroídos naquela época, por exemplo. Foi aí que a gente pediu a chave do sindicato pra começar a discutir Karl Marx. O Goianinho era o nosso guru”, afirma.
“Na época, o Fernando Moraes tinha lançado ‘A ilha’. E nós fizemos um acordo com a editora para vender esses livros em consignação. E, por incrível que pareça, a gente vendeu muitos livros. Isso em plena ditadura militar, que não era brincadeira. Então se criou um clima político mais à esquerda, principalmente a partir de 1974”, rememora.
Estudante
Essa disposição ao pensamento mais engajado à esquerda, entretanto, não aceita de forma unânime no sindicato, muito pelo contrário: “O Ariovaldo, que era o tesoureiro, era de direita, e ficou muito incomodado de vendermos o livro do Fernando Moraes. Mas o Jacó era muito habilidoso e viu que o melhor seria incorporar esse grupo”.
“Em 75 eu faço vestibular na Unicamp e passo para Economia. E, naquele período, a grande agitação política no país era feita justamente pelos estudantes. Então minha consciência política foi aprofundada ainda mais. E, também em 75, teria eleição no sindicato. E já tinha um burburinho que podíamos formar chapa de oposição”, recorda.
Foi aí que, ao acordar após uma noitada com os colegas de universidade, Alencar se depara com o presidente do sindicato em sua casa, uma república localizada na região da Lagoa do Taquaral: “Umas 9 horas da manhã, o Jacó chega lá na minha república pra me encher o saco para eu entrar na diretoria do sindicato. Mas eu falei ‘pô, Jacó, eu faço turno, agora entrei na Unicamp, como eu vou fazer?’. Só que ele falou que eu ficaria na diretoria, não seria liberado. Eu relutei, pensei, mas sabia que não podia fugir da luta. E então eu entrei para o sindicato”.
Sindicalista
Se em 1975 e 1976 as agitações políticas no país eram hegemonizadas pelos estudantes, a partir de 1977 e 1978, entram em cena os operários, com protagonismo dos sindicatos, principalmente os metalúrgicos da região do ABC. Concomitantemente, começaram a surgir movimentos contra a carestia, que assolava o país.
“Nesse período, a gente intensificou a consciência política. A gente mesmo fazia as edições dos jornais, os próprios diretores sindicais. O primeiro protesto que a gente fez foi uma tarja preta no uniforme, que a gente pregava na camiseta. Era simbólico, mas concreto, contra o contrato de risco que o Geisel fez, que podia abrir o setor de petróleo para empresas privadas. A gente, inclusive, vazou essa informação para o Diário do Povo de Campinas, que foi o primeiro jornal que soltou essa informação”, conta.
O clima de mobilização foi escalando, gradativamente. Após a tarja preta, o sindicato protagonizou um minuto de silêncio antes de todas as refeições na dentro da Replan. E, com isso, conseguiu abrir a primeira mesa de negociação com a Petrobrás, em 1978, porque antes disso tudo era feito a partir do dissídio coletivo, no Tribunal Superior do Trabalho. Pouco antes desse marco histórico, Alencar tinha sido liberado do trabalho na refinaria para atuar exclusivamente na tarefa sindical.
Nesse período, também começaram as discussões para se fundar um partido que organizasse os interesses das várias categorias de trabalhadores. Alencar, junto com Jacó Bittar, participou ativamente desse processo que resultou na criação do Partido dos Trabalhadores, em 1980. Simultaneamente, os sindicatos fundaram a Central Única dos Trabalhadores (CUT).
Apesar disso, qualquer paralização ainda era algo impensável no contexto da Petrobrás: “A palavra greve era palavrão, era crime contra a segurança nacional. Paulínia, por exemplo, não tinha prefeito eleito, ele era indicado pelo governador por ser considerada uma área de segurança nacional.
Mesmo assim, devido ao alto nível de mobilização, o Sindipetro Campinas protagonizou a primeira ocupação da refinaria em 1982, o que pode ser considerado o embrião do que viria a se consolidar como uma das maiores greves da categoria, realizada em 1983.
Grevista
Em meados de 1983, o ditador João Baptista Figueiredo lançou alguns decretos que atacavam diretamente os direitos dos petroleiros, entre eles o que abolia as férias em dobro para os futuros empregados da Petrobrás: “Eles queriam dividir a categoria, criar dois conceitos de trabalhadores. E foi esse o gancho que a gente utilizou para mobilizar a greve de 1983”.
E foi então que, no dia 6 de julho de 1983, os petroleiros da Replan, em Paulínia, e da Rlam, da Bahia, deram início à greve que duraria seis dias e entraria para a história: “A gente tinha a promessa de adesão de Cubatão e Salvador. Salvador entrou, realmente, mas Cubatão, por influência do Partidão, deixou a gente na mão. A gente só foi pra greve porque tinha certeza de que a base estava mobilizada e conscientizada para fazer a greve. Mas essa greve não começou em 1983, ela começou em 1975, não foi realizada de um dia para o outro. Essa greve foi um resultado de uma elevação de consciência, de trabalho de base de muitos anos”.
E é preciso ter muita consciência política para afirmar, como Alencar, que “a greve foi um êxito”. Isso porque, após os seis dias de parada da produção, a Petrobrás demitiu 349 demitidos, entre eles Antônio Jesus Alencar Ferreira. Casado com uma petroleira, em 1978, pai de dois filhos, Alencar precisou se reinventar.
Anistiado político
Demitido da Petrobrás, Alencar comprou um posto em Descalvado e, posteriormente, em Limeira, e foi a partir daí que sobreviveu. E foi somente em 1990, por meio de uma ação judicial, que conseguiu retornar à Replan, onde se aposentou em 1994.
A partir de então, liderou um movimento pela anistia política. Foram anos e anos de reuniões, encontros e negociações até que, no dia 28 de agosto de 2002, o então presidente Fernando Henrique Cardoso editou a Medida Provisória (MP) nº 65, que previa aos anistiados políticos reparação econômica, de caráter indenizatório. Posteriormente, essa MP se transformou na Lei 10.559, publicada no dia 13 de novembro de 2002.
Desde então, Alencar é uma das lideranças dos petroleiros anistiados na greve de 1983 e, atualmente, coordena a RELUTE (Associação dos Anistiados Políticos Petroleiros da Refinaria de Paulínia da Greve de 1983).
Alencar tem hoje 74 anos, três filhos e dois netos. Vive em Campinas e, apesar das circunstâncias adversas, fez história na categoria petroleira.