Necessidade de investimento público para fortalecer economia derruba tese de Bolsonaro e Paulo Guedes das privatizações ilimitadas e do Estado Mínimo
Por Luiz Carvalho
As fake news e o investimento pesado em mídias digitais foram fundamentais para levar Jair Bolsonaro (sem partido) ao Palácio do Planalto. Mas as ideias (ou ausência delas) não resistiram à realidade em estado febril após o coronavírus se espalhar pelo mundo.
Com a instalação de uma pandemia, o debate sobre a regulação e o papel estatal no desenvolvimento parece causar pânico em Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que se elegeram com o discurso da radicalização do Estado Mínimo.
Diante do mundo em crise, pautas históricas dos movimentos sindical e sociais foram aprovadas no Congresso Nacional, como a renda mínima, que depende do aval do Senado e da sanção presidencial, e a taxação de grandes fortunas.
Enquanto o governo federal brasileiro tenta estancar a sangria e jogar a responsabilidade de reativar a economia no colo da classe trabalhadora, expondo empregados e toda a nação a uma calamidade ainda maior, movimentos progressistas têm a oportunidade de debater com a sociedade qual o modelo de país se faz necessário construir após o caos.
Em entrevista, o coordenador técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Júnior, ressalta como a crise comprovou a importância do Estado para regulação social e o desenvolvimento do país. Trata também da importância de construir canais de diálogo para buscar soluções consensuais e dos desafios que o movimento sindical terá pela frente.
As forças que levaram Bolsonaro ao poder fazem a defesa do Estado Mínimo. A crise já foi capaz de demonstrar quão importante é o papel do Estado?
Fausto Júnior – Está muito claro que sem o Estado é impossível enfrentar uma crise dessas. Mesmo com todos os dilemas que possamos ter, como as deficiências do Sistema Único de Saúde (SUS), que em grande medida são fruto da falta de investimento por conta da visão liberal de um conjunto de governos, estaríamos perdidos sem o SUS.
A ideia de que a economia privada vai resolver todos os problemas não é real, tanto do ponto de vista dos direitos sociais, já que sem Estado não tem saúde, educação, Previdência, quanto da ação prática econômica. Nessa sexta-feira (28), o governo anunciou um conjunto de medidas para ajudar as pequenas e micro empresas, mas sem o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) seria quase impossível operar essas medidas. Se não tivéssemos a Petrobrás, como faríamos para garantir o gás de cozinha nas distribuidoras? Como garantiríamos que não irá faltar combustível?
A partir dessa crise, o consenso de muitos economistas liberais vai ficar pelo caminho.
A Medida Provisória (MP) 927, que o governo Bolsonaro apresentou e favorece exclusivamente os empresários, teve revogado o artigo 18, que tratava da suspensão de contratos de trabalho com suspensão de salário. A tendência é que o governo aproveite a pandemia para retirar direitos?
Fausto – O primeiro momento do governo Bolsonaro foi se aproveitar da crise para acelerar as reformas. A postura deles é muito clara, toda crise é uma oportunidade para que se flexibilizar anda mais o mercado de trabalho.
Não foi só o artigo 18, que falava de um lay off sem remuneração, toda a medida é uma reforma trabalhista 3.0. Porque radicaliza o que Bolsonaro e Guedes defendem, retirar o sindicato das discussões e implementar a negociação direta entre empresa e trabalhador. Quase todos os itens da 927 tratam de negociação individual que é inconstitucional. Mas eles se aproveitam do momento de exceção para tentar aplica-la.
Temos de tomar bastante cuidado, porque algumas decisões que definiremos no meio da crise podem se consolidar no pós-crise. Quando tudo isso passar, precisaremos de um nível de regulação maior porque muito do que está acontecendo vai acabar desestruturando a organização das relações de trabalho como conhecemos.
Você acredita numa tendência de que a luta da classe trabalhadora seja para alcançar o patamar de direitos que temos hoje?
Fausto – A realidade irá se impor, empresas estão acelerando sua curva de aprendizagem, não só tecnológica, mas também de gestão, e irão se apropriar disso. Esse aprendizado continuará, antecipará algumas mudanças que já prevíamos na indústria 4.0 para daqui cinco ou 10 anos.
Atividades que podem ser feitas por máquinas ou à distância vão ser incorporadas e teremos que lidar com isso muito antes do que o previsto. São alguns desafios que serão colocados ao movimento sindical.
O grande debate será sobre mais ou menos regulação, depois de uma crise em que o Estado foi fundamental. E quem faz a regulação do mercado de trabalho é o Estado.
Assim como o lucro já é, o risco deveria também ser de responsabilidade central do empresário, mas, novamente, a classe trabalhadora é chamada para pagar a conta. O que pode ser feito para proteger os trabalhadores?
Fausto – A prioridade agora é proteção à vida. Nada é mais importante. O movimento sindical tem de ter muito claro que a tarefa principal é criar condições, construir barreiras, criar oposição para qualquer coisa que coloque a vida do trabalhador em risco.
Chamo atenção disso porque garantir a vida, no caso da maioria, significa ficar em casa. E para quem precisa trabalhar, até mesmo como meio de garantir que a maioria fique em casa, o movimento tem de continuar a lutar para que tenha segurança.
Por exemplo, o trabalhador da saúde está vivendo uma condição muito complexa, tem faltado material, inclusive de proteção, até mesmo teste para saber se está contaminado, o que é um absurdo, temos de resolver isso imediatamente. Neste momento, aparece muito, as pessoas batem palma para ele, o jornal chama de herói, mas e quem está no transporte público, convivendo com 40, 50, 100 pessoas por dia? Os coletores de resíduo têm de lidar até mesmo com material contaminado, tem garantidas as proteções que necessitam?
Nesse sentido, chama atenção o artigo 29 da MP 927 do Bolsonaro, porque é um absurdo o que está dizendo para quem está arriscando a vida. Caso se contamine, isso não será caracterizado como doença de trabalho. Isso significa que, se ficar doente, quando voltar, não terá nenhuma estabilidade, pode ser demitido. Se fosse caracterizado como acidente de trabalho não poderia ser dispensado. Se ele morresse, a pensão que deixaria seria de 100% da sua contribuição, em caso de doença de trabalho, se não for é 60% desse valor.
A MP diz que para ter direito à indenização como acidente de trabalho precisa comprovar o nexo causal. Mas como fará isso se pode pegar o vírus em qualquer lugar? E pode ser contaminado justamente porque teve de sair de casa para trabalhar.
Você citou o setor bancário, que mesmo durante as crises lucra muito. Há maneiras de estabelecer garantais para que neste momento exista um modelo que contribua com a distribuição e não concentração da renda?
Fausto – O setor financeiro precisa ser chamado à responsabilidade. Pode apoiar muita coisa, a redução de tarifas é o mínimo que se deve fazer. Se estamos falando para as pessoas ficarem em casa, iremos usar muito mais a transferência de valores e o DOC ou TED não deveriam ser cobrados.
Têm de liberar recursos, porque a tendência é passarem a não disponibilizar crédito porque não têm como medir o risco no momento pós-crise.
Os bancos pedem para que o governo seja avalista desse crédito, mas deveriam ter um papel mais ativo e de verdadeira responsabilidade social. O que fazem é o contrário, até se aproveitam desse momento para fazer renegociações, estão dizendo que dão até 60 dias para o cliente pagar, mas quando vai assinar novamente o contrato, descobre que está fazendo um novo empréstimo.
Cabe à sociedade e ao Estado, por meio do Banco Central, chamar os bancos à sua responsabilidade.
Durante os governos Lula e Dilma, a criação de grupos de trabalho (GTs) para estabelecer projetos e soluções para o país, com a participação da sociedade civil, governo e empresariado, foi uma realidade. Esse seria um caminho a seguir agora?
Fausto – Sim, porque são nesses espaços de diálogo que se estabelecem consensos. Muitas vezes leva até mais tempo para tomar uma decisão consensuada, mas, por outro lado, sua aplicação é mais rápida e tende a ser mais eficiente.
A MP 927 é um ótimo exemplo de como não fazer, porque o governo federal ouviu exclusivamente os empresários e vemos a medida ser questionada pela sociedade e pelo Poder Judiciário, além de apresentar ineficiência em uma série de artigos.
Bolsonaro com o apoio e até campanha publicitária para o retorno ao trabalho e reabertura de atividades comerciais. Qual outro caminho para o trabalhador além do papel de ser refém nesse jogo?
Fausto – O que precisamos hoje é de uma posição muito firme de trabalhadores e de empresários que tenham uma visão mais progressista do mundo e que entendam que a proteção à vida é a prioridade.
A saída da quarentena deve ser pensada de uma maneira negociada e decente. Não é uma saída de uma vez, temos de ir escalonando essa volta, de maneira coordenada, de acordo com o número de contaminações, leitos disponíveis e óbitos.
Para a abertura controlada é preciso fazer testes que identifiquem quem está doente e deve continuar em quarentena, isolando assim só os contaminados. Sem os testes é muito difícil fazer essa transição. Se não fizer esse movimento gradual, o risco de aumentar o número de contaminados e mortes é muito grande.
O grande problema hoje é que o governo federal é incapaz de fazer essa discussão, até porque não acredita nisso, acredita que deve fazer voltar a funcionar porque a economia e o mercado são mais importantes do que a vida.
Na ausência da figura do líder na Presidência da República, esperamos que nesta crise surja não só um, mas um conjunto deles capazes de levar o país para o bom caminho nos próximos meses que iremos enfrentar.