Entidades ligadas ao setor financeiro criticam alteração na Lei das Estatais e nome do futuro ministro para o BNDES; gestão Bolsonaro foi imune a críticas
Por André Lucena*
A Câmara dos Deputados aprovou uma alteração na chamada Lei das Estatais (Lei 13.303/16) que altera o prazo de quarentena para que indicados possam ocupar presidências e diretorias de empresas públicas. A decisão foi tomada na terça-feira (13).
No texto original da lei, aprovada durante o governo Michel Temer (MDB), esse prazo é de 36 meses. Com a nova redação, de relatoria da deputada Margarete Coelho (PP-PI), o prazo passaria para 30 dias. A proposta de alteração na Lei das Estatais ainda precisará ser discutida no Senado Federal.
Todos os deputados do PT, Psol, Rede, PC do B e Solidariedade votaram a favor da mudança. Por outro lado, todos os parlamentares do PTB, Novo e Patriota votaram contra.
Antes da votação na Câmara dos Deputados, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) havia confirmado a indicação de Mercadante para a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
Contradições e falta de fundamentos nas reações do mercado financeiro
Logo depois da aprovação da alteração legislativa, o mundo político se viu diante de uma série de repercussões que indicavam que a mudança serviria para beneficiar o economista Aloizio Mercadante.
A maior parte das críticas à mudança veio de entidades ligadas ao setor empresarial e ao mercado financeiro. Notas de repúdio, por exemplo, foram emitidas por entidades como a Associação dos Investidores no Mercado de Capitais (Amec), o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) e a Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais do Brasil (Apimec Brasil).
Desde 2020, Aloizio Mercadante preside a Fundação Perseu Abramo (FPA), instituição de projetos de formação política, ligada ao PT. Nas eleições de 2022, ele foi um dos responsáveis pela elaboração do programa de governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
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Segundo Rodrigo Salgado, advogado e professor de Direito Econômico no Programa de Mestrado e Doutorado da Universidade Presbiteriana Mackenzie, não haveria impedimento legal para que Mercadante assumisse a presidência do BNDES, mesmo sob a vigência da atual Lei das Estatais.
Para Salgado, Mercadante “não foi quadro de direção partidária, não possui cargo de direção em sindicato, nem foi candidato nos últimos 36 meses (…) ele tem formação na área econômica e expertise na área. Assim, não acho que seja um problema. A questão toda passa por qualificação técnica”.
A opinião é compartilhada por Clemente Ganz Lúcio, assessor técnico das Centrais Sindicais e ex-diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Para ele, o nome de Mercadante atende aos critérios necessários para a presidência do banco.
“Aloizio Mercadante é um excelente nome para dirigir o BNDES”, afirma Ganz Lúcio, “é um profissional altamente competente, com ótima qualificação, experiência como senador e ministro nos governos Lula e Dilma”. Para o especialista, Mercadante sempre apresentou “uma visão desenvolvimentista, compromisso com o crescimento econômico e com o crescimento de qualidade. E a concepção do papel central que o BNDES envolve em se descolar para ser, efetivamente, um banco que dá sustentação ao desenvolvimento virtuoso da base industrial e de todo o sistema produtivo”.
As entidades empresariais e financeiras que manifestaram repúdio não demonstraram inconformismo quando, em 2019, Fábio Abrahão foi nomeado diretor de Concessões e Privatizações do BNDES.
Naquela ocasião, o departamento de análise da estatal apontou “registro de atividade associada à campanha eleitoral com relação à eleição de 2018 do Partido Social Liberal (PSL)”. À época, o presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda era filiado à legenda.
Rodrigo Salgado interpreta a reação atual do mercado financeiro como uma manifestação da barganha política do setor. “É uma gritaria em relação aos seus”, aponta Salgado.
“Se a gente for analisar, uma parte significativa das indicações do governo Bolsonaro não respeitou a Lei das Estatais. E não houve nenhum tipo de gritaria por parte do mercado financeiro. Por quê? Porque eram pessoas ligadas, direta ou indiretamente, a ele [mercado financeiro]. Durante o governo Bolsonaro, houve uma clara financeirização da atividade econômica do Estado, seja através de privatização, seja através de desmantelamento. Desse modo, o que houve foi a entrada do sistema financeiro na própria gestão e na orientação de companhias como Petrobrás, BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil. Essa histeria já era prevista”, concluiu o pesquisador.
Clemente Ganz Lúcio, no mesmo sentido, acredita que o comportamento do mercado financeiro é reflexo de um setor bastante ligado ao Governo Federal nos últimos quatro anos.
Para o especialista, “a reação do mercado financeiro é uma reação de um segmento que tem uma outra visão, a visão daqueles que estão saindo do governo hoje”. Segundo Ganz Lúcio, o mercado financeiro, em geral, possui uma concepção de desenvolvimento que “visa garantir a remuneração do sistema financeiro, para continuar gerando riqueza para poucos nesse país”.
O caso BNDES
Durante o mandato presidencial, Jair Bolsonaro (PL) insinuou que haveria uma “caixa-preta” no BNDES e que ele seria o responsável por revelá-la.
Em junho de 2019, Bolsonaro forçou a demissão de Joaquim Levy do BNDES, indicando Gustavo Montezano para a presidência do banco estatal, cargo que ainda ocupa.
Naquela oportunidade, o porta-voz da Presidência, Otávio do Rêgo Barros, comunicou que Bolsonaro queria “abrir a caixa-preta do passado, apontando para onde foram investidos recursos em Cuba e na Venezuela, por exemplo”.
Negando que houvesse perseguição política no BNDES, Barros afirmou que “o presidente entende que eventuais pessoas que tenham participado de governos que colocaram o Brasil na situação catastrófica em que se encontra não devem compartir conosco a melhoria do Brasil”.
Gustavo Montezano é uma figura historicamente ligada ao mercado financeiro. Atuou como analista no antigo Banco Opportunity e foi, também, sócio do banco BTG Pactual.
Antes de assumir a presidência do BNDES, Montezano foi secretário-especial-adjunto de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia. Atuava na linha de frente da política de desmonte do Estado, defendida por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes, ministro da Economia do atual governo.
Para Rodrigo Salgado, “o governo que está se encerrando agora teve muita participação de gestores de fundos de investimento, com várias denúncias de porta giratória relacionadas ao setor econômico do governo”. Essa prática, explica o especialista , permitiu o que ele nomeia como “terrorismo do mercado financeiro”.
Segundo reportagem do Correio Braziliense, de 16 de julho de 2019, Jair Bolsonaro comemorava como uma conquista pessoal a indicação de Montezano para a presidência do BNDES, uma vez que, entre outros atributos, ele era amigo de longa data dos seus filhos.
“Quando (Guedes) me apresentou o garoto, eu também me empolguei”, afirmou Bolsonaro, naquela ocasião, “como o morador do condomínio, acompanhava, em parte, as atividades deles todos […] esse garoto que está aí eu conheço desde piá, lá na Dona Maria, do 71. Amigo dos meus filhos. Essa juventude merece respeito”, continuou o presidente.
Apesar, também, da ligação pessoal de Montezano com os filhos do presidente Jair Bolsonaro, as entidades de governança corporativa não emitiram notas de repúdio em defesa da impessoalidade ou apontando as contradições legais para o exercício da presidência da empresa pública.
Mudanças na política de investimento do BNDES sob o governo Bolsonaro
Dados do próprio BNDES, divulgados pela Agência Senado, apontam que o banco, durante o governo Bolsonaro, reduziu seus investimentos na indústria e passou a investir substancialmente no agronegócio. Setor, aliás, que compõe uma das principais bases eleitorais de Jair Bolsonaro.
Em 2021, por exemplo, o BNDES destinou 26% (R$18 bilhões) dos seus recursos aos produtores rurais, e apenas 16% (R$11,2 bilhões) às empresas do setor industrial. A título de comparação, em 2009, segundo a Agência Senado, o agronegócio recebia apenas 5% dos recursos do BNDES, que destinava 47% dos seus recursos à indústria brasileira.
Esse desvirtuamento colocou em discussão, durante o governo Bolsonaro, o próprio papel do BNDES. Criado por Getúlio Vargas, em 1952, o banco público sempre visou destinar investimentos necessários à indústria, principalmente. O crescimento do privilégio do agronegócio nas atividades do BNDES durante o governo Bolsonaro, para além das motivações de natureza política, tem o potencial de prejudicar a indústria brasileira. Além disso, no que se refere ao agronegócio, o setor já possui meios próprios de financiamento, como o Banco do Brasil.
Clemente Ganz Lúcio acredita que a mudança na gestão do BNDES pode ser positiva para o banco, com reflexos no setor industrial e na capacidade de geração de empregos do país.
Segundo Ganz Lúcio, “o desenvolvimento industrial e todo o incremento de produtividade no setor produtivo é fundamental para a geração de empregos de qualidade, que é oriundo de uma economia que é capaz de agregar valor na sua estrutura produtiva e, portanto, gerar renda e riqueza de forma ampliada com essa capacidade de criar empregos que sejam de boa qualidade, com bons salários e que propiciam incremento da renda do trabalho”.
O especialista estima que o novo ciclo seja capaz de aplicar, no país, “uma dinâmica econômica, com sustentabilidade social e ambiental”.
Incertezas no Senado Federal
Na última quinta-feira (15), o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), indicou que, diferentemente do caso da Câmara dos Deputados, a votação do projeto no Senado Federal poderá não ser imediata.
“Temos que amadurecer”, disse Pacheco. “Não há nada definido em relação a isso. O que se viu de boa parte dos líderes do Senado é a necessidade de uma melhor reflexão a respeito. Não quero afirmar que ficará para o ano que vem, mas não necessariamente será nesta semana e pode não ser na próxima também”.
No Senado, congressistas avaliam a possibilidade da proposta ser analisada, primeiramente, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes de ser debatida no plenário. Sobre essa possibilidade, Pacheco afirmou que “esses temas que dão mais polêmica é difícil você levar direto para o Plenário […] uma pauta que não tenha tanto consenso, e aí pode ser recomendável, sim, passar por uma das Comissões da Casa e, nesse caso da Lei das Estatais, é a Comissão de Constituição e Justiça”.
Desde a vitória de Lula nas eleições de outubro, o mercado dá sinais de otimismo com o novo governo do petista, explica Salgado. O especialista é otimista sobre a alteração da Lei das Estatais, contanto que a medida sirva para melhorar a qualificação das pessoas indicadas aos cargos de gestão das estatais. Assim, o pesquisador alerta que “se a alteração da Lei das Estatais servir apenas para agradar a composição da base aliada, podemos ter problemas”. Por outro lado, para Salgado, “se essa alteração servir para que pessoas qualificadas possam integrar a gestão das companhias, com o fim de assegurar o cumprimento da função social dessas empresas, o Brasil só tem a ganhar”.
*Sob orientação