Diretor do Dieese, Fausto Augusto Júnior, defende que organizações sindicais revejam sua lógica de atuação para que tecnologia se torne uma aliada
Mesmo com o aumento da taxa da população ocupada em 2,5% em 2019 na comparação com 2018, o número de sindicalizados no país caiu, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado em 26 de agosto.
O afastamento em relação aos sindicatos cresce a partir da implementação da reforma trabalhista, no final de 2017, quando a sindicalização chegou a 13.070 de trabalhadores, o equivalente a 14,4% da população com emprego. Em 2019, o número desceu novamente, para 10,567 milhões, o equivalente a 11,2% da população presente no mercado de trabalho.
Em entrevista ao Sindicato dos Petroleiros do Estado de São Paulo, o diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Júnior, ressalta que parte da queda deve-se a uma noção equivocada de filiação.
Para ele, a pesquisa pode não ter conseguido avaliar, de fato, se o entrevistado era filiado a alguma entidade, já que muitos trabalhadores associavam o desconto do imposto sindical, extinto coma a aprovação da reforma, com o pertencimento a alguma entidade.
Mas a criminalização da política e de todos os seus pilares, que teve seu ápice nas jornadas de junho de 2013, é um fator fundamental para essa redução, destaca.
Durante a conversa, Fausto Augusto Júnior ressaltou ainda que a lógica sindical de organização industrial a partir de ambientes de trabalho com um grande número de pessoas reunidas terá de ser revista. Ele destaca também que o ingresso no mundo digital pelos sindicatos por conta da pandeia é uma tendência sem volta e terá de ser aprofundado e qualificado.
Confira abaixo a entrevista.
A taxa de sindicalização vem em queda desde 2013. Com maior flexibilidade do mercado de trabalho e a necessidade de união da classe trabalhadora para lutar por direitos a partir da reforma trabalhista não deveria haver um movimento contrário?
Fausto Augusto Júnior – Esses números precisam ser olhados com bastante cuidado, ainda estamos abrindo esses dados para destrincha-los.
O primeiro problema é ter caído em três pontos essa taxa entre 2016 e 2019, o período da reforma trabalhista. Uma das hipóteses é que a taxa de sindicalização poderia estar superestimada, em especial no setor privado. Estamos falando de uma pesquisa domiciliar, que pergunta apenas se o entrevistado está filiado a algum sindicato. E aí tem um problema, muita gente entendia que o ter o desconto do imposto sindical no salário era uma filiação.
Quando acabou o imposto sindical compulsório e a empresa passou a adotar a necessidade de indicar se os trabalhadores queriam pagar, muitos optaram pelo não desconto e entenderam que não eram mais sindicalizados.
Outra questão que precisa ser avaliada é o setor público, que tem taxa de sindicalização muito maior, vinculada à própria história de não ter imposto sindical e, portanto, contar exclusivamente com os associados para sobreviver. E o servidor tem uma condição de trabalho estável, é alguém que se manterá no mesmo setor por várias décadas. Caso não tenha conflito com o sindicato, costuma se manter filiado, inclusive, após aposentar-se.
Mas tivemos a reforma da Previdência e muita gente do funcionalismo antecipou a aposentadoria para não entrar no novo formato. Esse aposentado não entra na conta dos sindicalizados, mesmo que se mantenha filiado.
Essas são questões técnicas, da própria pesquisa. Outro fato é que temos uma crise econômica que levou a um conjunto de demissões. Além da reforma trabalhista, o Brasil ainda passou por dois anos de recessão, não cresceu quase nada em 2019 (o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) foi de 1,1%) e enfrenta outra recessão em 2020.
Essa perda da economia faz com que muita gente saia do mercado de trabalho e deixe o sindicato.
Você acha que a descrença e a criminalização de instituições políticas contribuem também com esse quadro?
Fausto – Sem dúvida, há uma perda de confiança em todas as entidades políticas no Brasil, não só sindicatos, mas também o Congresso Nacional, partidos, todos estão em baixa. Mas o único que hoje vive exclusivamente do financiamento de seus filiados é o sindicato.
Além disso, o sindicalismo foi criado a partir da visão de uma organização industrial, pensamos sempre a partir de uma relativa facilidade de acesso ao trabalhador no posto de trabalho, um conjunto de direitos, de habitualidades, de pessoas que estarão sempre no mesmo lugar, em grandes concentrações. E isso também está em crise.
Há cada vez menos trabalhadores na indústria, cada vez mais nos serviços que, por sua vez, estão pulverizando sua organização, atuando, por exemplo, com trabalhadores com os quais não tem ligação direta, mas por meio de aplicativos. Tivemos a liberação da terceirização irrestrita com a reforma trabalhista.
“O sindicalismo foi criado a partir da visão de uma organização industrial, pensamos sempre a partir de uma relativa facilidade de acesso ao trabalhador no posto de trabalho, um conjunto de direitos, de habitualidades, de pessoas que estarão sempre no mesmo lugar, em grandes concentrações. E isso também está em crise”
Temos uma mudança no mercado de trabalho à qual o sindicato ainda está se adaptando.
Há um processo de transição acontecendo neste.
Os empregados com carteira assinada são os que têm maior taxa de sindicalização e o inverso em relação aos empregados no setor privado sem carteira assinada e aos trabalhadores domésticos. Por que essa discrepância?
Fausto – Quem terá mais sindicalizado é o setor público por conta da estabilidade, depois o setor privado mais estruturado até chegar ao menos.
O informal sempre foi grande, mas havia um movimento, ao menos aparente, e essa era a discussão que fazíamos nos anos 1970, de hegemonização do mercado formal. Algo que não se confirmou, o trabalho informal se consolidou como parte do sistema de exploração do capitalismo, com retirada de direitos trabalhistas.
As três últimas grandes greves que ficaram famosas, tiveram repercussão na mídia tradicional, foram a dos caminhoneiros, em 2018, a dos motoristas de Uber, em 2019, e a dos entregadores de aplicativo, em 2020. São greves em que não há sindicatos tradicionais, com formas diversas de associação.
Você que acredita que o atual sindicalismo irá capaz de sobreviver?
Fausto – No Brasil, a gente tem a impressão de que o sindicalismo foi sempre assim, mas o modelo que conhecemos é bastante recente. Está demarcado a partir do final dos anos 1970, das grandes greves para cá. Forjado na luta pela Constituição de 1988.
Antes dele, existia outro, cartorial, de colônias de férias, porque fazia parte do papel do sindicato garantir direitos que o Estado não dava. Alguns tinham médico, dentista, farmácia.
E antes ainda, na década de 1920, não havia organização por categoria, era um anarco-sindicalismo, completamente diferente do que conhecemos, não existia o conceito de ajuda mútua, não existia imposto sindical.
Recentemente foi fundada uma entidade chamada Unicab (União Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras Camelôs, Feirantes e Ambulantes do Brasil) e é uma associação. Não tem característica sindical, mas congrega os trabalhadores sob esse arco, temos entidades hoje no Brasil que congrega cooperativas.
Uma parte do modelo sindical que existe hoje irá se manter, mas terá de se transformar. Outra irá desaparecer junto com algumas profissões e novos entes surgirão.
A principal preocupação é até que ponto a visão coletiva estará colocada, porque tem sido desconstruída com uma visão individualista, como sinaliza a reforma trabalhista, que tenta impor a ideia de que não precisa de organização coletiva e sim da resolução de conflitos individualmente. Não é uma questão jurídica, mas de como os trabalhadores se enxergam.
O Dieese apresentou um levantamento sobre as campanhas salariais do primeiro semestre e o número de cláusulas relativas a reajustes salariais foi 28% inferior ao mesmo período do ano passado. Número que também pode ser influenciado pelo adiamento das negociações. Isso tende a impactar nas taxas de sindicalização?
Fausto – O que muito provavelmente irá impactar será como o movimento sindical atuou na pandemia e acredito que essa curva possa ser até invertida. Porque o movimento sindical, durante esse período, executou mais de oito mil acordos.
Esses números vão provando que os sindicatos cumpriram um papel bastante importante, inclusive em relação à negociação da pandemia, na negociação de questões como as da MP (Medida Provisória) 936, que trata da redução de jornada, de salários, garantias. Pode ser que assistamos uma nova adesão, teremos de aguardar.
“O que muito provavelmente irá impactar será como o movimento sindical atuou na pandemia e acredito que essa curva possa ser até invertida. Porque o movimento sindical, durante esse período, executou mais de oito mil acordos”
Há uma compreensão da sociedade neste período de que a maior preocupação era a manutenção do emprego, estava negociando muito menos do que o reajuste, até porque a inflação estava baixa. Estava discutindo condições de trabalho e outras questões.
Os sindicatos conseguiram se adaptar à nova realidade, de assembleias digitais, de contato não presencial com as bases?
Fausto – Acho que essa foi a grande novidade, o movimento sindical finalmente entrou no século 21. As condições de trabalho tendem a piorar muito após a pandemia, aumento do desemprego, mas o saldo sindical pode ser bastante positivo.
A quantidade de atividades digitais está bastante grande, acontecendo de maneira muito acelerada e está chegando ao trabalhador comum. Imagina uma assembleia grande, na quadra dos bancários, em São Paulo, dos petroleiros, ela terá mil pessoas. Mas a maioria não chega a 200. Enquanto isso, o mundo virtual atinge milhões de pessoas, que vão repassando o vídeo, a discussão.
A assembleia virtual acaba se tornando quase que um plebiscito, o sujeito entra no sistema e vota a favor ou contra a proposta, em sigilo, numa negociação ou convenção. Não sei se isso permanece, mas tem uma capacidade enorme de organização. A tecnologia é isso, da mesma forma que desorganiza, com home office, teletrabalho, dificultando muito a ação sindical, os sindicatos também começam a aprofundar o uso desses meios para chegar ao trabalhador.
Segundo o Dieese, 18,5 milhões de brasileiros não trabalharam e não procuraram ocupação devido à pandemia, 19 milhões de pessoas foram afastadas do trabalho e 30 milhões tiveram alguma redução no rendimento do trabalho. A partir desses números é possível prever o que acontecerá com a classe trabalhadora?
Estamos retroagindo quase uma década em pouquíssimo tempo, as previsões mais otimistas falam em crescimento de 3.5% do PIB para uma queda que deve passar dos 6% neste ano. A economia no Brasil está muito fragilizada e está não é uma perspectiva boa para os próximos dois anos.
Isso irá reverberar sindicalmente em negociações mais difíceis, porque não se trata só de uma questão econômica, mas também de propostas ultraliberais que são colocadas na mesa para sair desse momento. A ideia é confronto com o movimento sindical, de conflito. As organizações sindicais terão de lidar com uma pressão contra elas, deve ser um momento de grande tensão e terão de reorganizar suas forças.