Doutora em Relações Internacionais, Ana Penido Oliveira destaca que Forças Armadas têm mais relação com permanecer no comando do que em implementar um programa para o país
Com a demissão de Castello Branco e a nomeação do general Joaquim Silva e Luna para a presidência da Petrobrás, o governo conta com mais um militar em um cargo estratégico para o país.
Na prática, trata-se de um remanejamento, já que Silva e Luna ocupava a presidência da hidrelétrica de Itaipu desde janeiro de 2019.
O militar é mais um representante das Forças Armadas a preencher as fileiras do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Quase um terço dos ministros é militar e, segundo levantamento do Tribunal de Conta da União (TCU), o número dobrou em relação ao governo de Michel Temer (MDB). De 2.765, em 2018, passaram a ocupar 6.157 cargos civis na gestão de Bolsonaro até julho de 2020.
Para a cientista social, pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e pós-doutoranda do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (IPPRI-Unesp) Ana Penido Oliveira, o projeto de poder das Forças Armadas transcende o governo e afeta diretamente as relações democráticas.
Em entrevista ao Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo, a autora de um dos artigos da obra “Os militares e a crise brasileira”, recém-lançado pela Editora Alameda, fala também da associação equivocada entre desenvolvimentismo e militares e pontua como a noção de inimigo respinga no trato com a luta por direitos.
No início do ano, Bolsonaro disse que quem define se o povo viverá numa democracia ou ditadura são as Forças Armadas. A visão de tutela militar sobre o estado democrático é algo generalizado entre os militares ou uma visão específica do presidente?
Ana Penido Oliveira – É algo generalizado, antigo e reticente. Agora isso fica mais óbvio porque passaram a intervir diretamente. Mas não acho que vivemos um momento de tutela, acredito que abriram mão desse papel para assumir o poder diretamente. Metade do primeiro escalão do governo vem das Forças Armadas, principalmente do Exército. Antes, ficavam restritos a áreas com as quais identificavam e estavam mais próximas dos centros de segurança, como o Ministério da Defesa.
O discurso de que a militarização da sociedade melhora os níveis de segurança, disciplina e respeito parece ter uma boa aceitação pela população. Por quê?
A disciplina é um conceito difícil para discutir. Uma coisa é discutirmos o que é disciplina militar, tem de ter hierarquia, obediência, porque está preparando uma pessoa para atuar num ambiente em que é necessária uma pronta resposta. O problema é que coisas pensadas para um momento de guerra são trazidas para um ambiente de paz em áreas que não estão relacionadas com a Defesa. Por exemplo, no ambiente da Defesa é necessário ter algum grau de sigilo em planos estratégicos, há uma cultura de segredo. Mas se levar isso ao Ministério da Saúde, vamos ter uma rotina de esconder dados, apresentá-los tardiamente à imprensa. Ao contrário do que a gestão pública prega, a ideia de transparência, controle. Tentam trazer para o meio civil uma tradição que é comum ao meio militar. A militarização não se mede pela quantidade de militares, mas por transferir para um ambiente que não é militar a forma de pensar e organizar das Forças Armadas.
Nesse sentido, o governo parece caminhar na construção de uma ideia hegemônica, que inclui estabelecer inimigos e eliminar adversários. Qual o impacto que isso traz para a formação da sociedade brasileira a curto e médio prazo?
A noção de inimigo, num ambiente democrático, é completamente distinta à política, que trabalha com uma ideia de adversário. Aquele que num momento está num lado distinto, em outro, pode ser seu aliado. A ideia de inimigo é de matar o oponente, aquele que deve desaparecer, porque não merece existir. Para começar é incompatível com a democracia, um regime de conflito de ideias, posições, grupos, propostas, projetos antagônicos. A ideia de casta, que se considera superior, tão presente entre os militares, vai ressignificando esse inimigo no Brasil, que era o anticomunismo, virou o antipetismo, o antifeminismo, ao antindigenismo. Vai customizando conforme o interlocutor.
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É possível traçar um perfil dos militares que ocupam cargos centrais do governo Bolsonaro e quão influentes eles são?
A influência deles é enorme e foi se expandindo ao longo do governo. Ficou claro que uma instituição como as Forças Armadas não se deixa ser capturada e simplesmente vai embora. O Bolsonaro é fruto desse trabalho mais sorrateiro em que parte das Forças Armadas foi se engajando. Bolsonaro veio das camadas inferiores dos militares, então, acreditava-se que seria com esses setores que dialogaria. Mas os altos cargos do governo são ocupados por generais e coronéis. E cada patente faz uma ‘escadinha’. O general leva o coronel para ser secretário-executivo, chefe de gabinete. Esse leva o capitão. E isso, provavelmente, acontecerá na Petrobrás, ninguém vai sozinho. O partido militar, esses membros de um núcleo duro das Forças Armadas, conservaram para si o poder, não houve distribuição com outros segmentos das forças de segurança.
Como podemos avaliar a relação dos militares, que têm como característica um discurso, ao menos na teoria, nacionalista, com o governo Bolsonaro que abre as portas para a privatização e é submisso aos Estados Unidos?
Existe uma confusão na esquerda sobre o nacionalismo econômico, que não é majoritário na história das Forças Armadas. O pessoal lembra sempre da atuação dos militares para criação da Petrobrás, mas se formos olhar ao longo do tempo, o desenvolvimentismo está fora de moda para os militares desde antes do fim do regime militar. A formação econômica desses generais é majoritariamente feita pela Fundação Getúlio Vargas, que olha com carinho para a iniciativa privada. É uma formação privatista, só não tem essa opinião também para as atribuições de repressão e defesa, para as quais querem um Estado forte. Se com a Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica) não houve problema em privatizar, a Petrobrás certamente não despertará pudores. Temos a visão ingênua de que são economicamente desenvolvimentistas.
Isso não quer dizer, porém, que manterão a mesma política que vinha sendo aplicada, porque o objetivo não é responder ao mercado, mas à própria base, que são as Forças Armadas. Bolsonaro não faz promessas a esse grupo, faz entrega, a reforma de carreira que houve foi como um prêmio perto do que foi a Reforma da Previdência para os demais servidores públicos.
Mas para que eles sigam no poder, neste momento, precisam que o governo continue. E para continuar é preciso que Bolsonaro agrade além das camadas ultraliberais. O partido militar é fiador desse governo, emprestou a confiança das Forças Armadas para este governo.
Como a inserção de militares na máquina pública pode afetar um futuro governo progressista?
Os militares não vieram para sair, mas para ficar, com ou sem Bolsonaro. Hoje a maior ocupação militar é no GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República), o sistema de inteligência que controla a comunicação e as informações estratégicas. É um perigo dessas burocracias que autonomizam e, de autônomo para independente e superior, é apenas um pulo.
No caso da burocracia militar, há três questões que a tornam diferenciada: ela tem armas, funciona com hierarquia e disciplina e tem espírito corporativista. Se você for falar com um militar e questionar: ‘e se tiver corrupção nas Forças Armadas?’, ele vai dizer que isso é impossível. Há a ideia de que são um corpo único e quando alguém ataca aquele corpo é como se estivesse atacando o todo.
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Até o impeachment de Dilma Rousseff, quando os militares se colocaram abertamente favoráveis ao golpe, aparentemente havia uma preocupação dos nomes de alta patente de transparecerem uma ideia de distanciamento da política institucional. O impeachment é o que faz essa chave mudar?
Começa a mudar um pouco ali, mas quando o Etchegoyen (Sérgio Etchegoyen) vai assumir o GSI e Joaquim Luna, o Ministério da Defesa, já colocam uma postura mais tutelar, se colocam mais na política. Durante os governos petistas é que houve uma equidistância, uma coisa de ‘vocês não mexem no que eu quero implementar e o governo não contraria o que querem fazer’. Porque é isso, o PT não fez nenhuma grande mudança nas Forças Armadas, a exceção foi a Comissão Nacional da Verdade, já no mandato da Dilma.
Até o impeachment, havia uma coisa de a instituição não tomar partido na política, algo que é interrompido e se torna simbólico com uma mensagem do Villas Bôas – em 2018, o general postou numa rede social, na véspera do julgamento do ex-presidente Lula, que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia” –, que claramente tem um viés institucional, afinal, ele era comandante do Exército no governo Dilma.
Acredito que há a motivação de ter um bom salário, mas acho que há mais coisas para além disso. Acredito que alguns desses militares que vão para esses espaços de poder têm projeto de passar a República a limpo, se sentem injustiçados por terem passado para a nova geração a ideia de que vivemos uma ditadura e houve tortura. Parte quer reescrever e repensar a história do Brasil.
Mas é diferente de 1964, quando havia um projeto de nação. Com esses militares há um projeto de poder da corporação. O grande problema é que acreditam que a corporação é quem mais entende de nação.
Os militares são patriotas no sentido dos símbolos nacionais, cuidado com o hino, territórios, fronteiras. Mas ser nacionalista é outra questão, é soberania popular. A noção que eles têm de democracia não inclui a participação popular, pelo contrário, é vista como perturbação da ordem. Para os militares, qualquer questão estará subordinada ao aspecto da segurança.
A expectativa de que ter um general à frente da Petrobrás paralisará a venda de ativos, porque seriam nacionalistas, pelo que estão mostrando dentro do governo, é equivocada. O que pode causar alguma modificação é o impacto na popularidade do governo Bolsonaro. Então, o que pode acontecer é alguma alteração na política de preço da Petrobrás. Mas não tenho qualquer expectativa de que o processo de privatização seja paralisado.