Especialistas analisam hipóteses sobre os protestos violentos iniciados a partir do reajuste no preço do combustível na ex-república soviética
Por Daniel Giovanaz, especial para o Sindipetro-SP
“Trabalhadores do oeste do Cazaquistão protestam contra reajuste no preço do combustível”. O que parecia assunto de interesse local, há duas semanas, tomou conta dos noticiários internacionais, com repercussões da China aos Estados Unidos.
O valor cobrado pelo gás liquefeito de petróleo (GLP), que abastece quase 90% dos carros do Cazaquistão, dobrou após a retirada de subsídios estatais no fim de 2021. De forma pacífica, os operários da cidade petroleira de Zhanaozen questionavam o aumento do custo de vida, da pobreza e da desigualdade.
O Cazaquistão é uma ex-república soviética, e cerca de 20% de seu Produto Interno Bruto (PIB) depende do petróleo. Com a redução global de demanda na pandemia, os países produtores foram atingidos em cheio.
Presidente cazaque desde 2019, Kassym-Jomart Tokayev foi convencido a suspender o reajuste do GLP, mas não impediu que a onda de insatisfação chegasse a Almaty, maior cidade do país. Conforme se espalhou, o movimento assumiu uma nova bandeira: a derrubada do governo.
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Os métodos também mudaram da noite para o dia. Tiroteios, saques a lojas, ataques a aeroportos e canais de TV e incêndios em prédios públicos provocaram a renúncia de todo o gabinete de Tokayev em 5 de janeiro. Pressionado, o presidente autorizou os militares a “atirar para matar”.
Até a última segunda-feira (17), foram confirmadas 12 mil detenções e 225 mortes durante as manifestações, reprimidas com apoio da Rússia.
O surgimento de milícias armadas contra o governo e a ausência de um porta-voz do movimento alimentam as suspeitas de conspiração estrangeira. Sem comprovações, Tokayev e a imprensa internacional especulam: quem teria interesse em desestabilizar a maior economia da Ásia Central, e por quê?
“Em termos energéticos, o Cazaquistão é fundamental para as grandes potências”, ressalta Tulio Bunder, mestrando em Política Comparada da Eurásia na Escola Superior de Economia (HSE University), na Rússia.
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Com cerca de 1,6 milhão de barris de petróleo por dia (bpd) – pouco mais da metade da média brasileira, que é de aproximadamente 2,8 milhões bdp –, o Cazaquistão é o maior produtor da Ásia Central e responde por 9% das importações da Europa. O país fornece ainda 5% do gás natural consumido pela China e 40% do urânio consumido no mundo.
“Mais importante que o tamanho das reservas é a posição central que o Cazaquistão ocupa no ‘continente eurasiano’, entre Europa e Ásia”, acrescenta Bunder, que é mestre em Energia pela Universidade Federal do ABC (UFABC).
Relevância estratégica
Com território maior que a Europa Ocidental e população inferior à da Região Metropolitana de São Paulo, o Cazaquistão foi presidido por Nursultan Nazarbaev do fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922-1991) até 2019. Sob comando dele, a política externa tornou-se “multivetorial”, buscando ampliar o número de parceiros internacionais.
Petrolíferas como Chevron (EUA), Exxon Mobil (EUA), Total (França) e Shell (Reino Unido e Holanda) atuam há quase 30 anos no país.
“A desvantagem do Cazaquistão é não ter acesso aos mares. Para exportar gás liquefeito à Europa, precisaria de uma rede de dutos, passando por dentro do Mar Cáspio e se conectando ao corredor meridional do sul, ou então passando pelo território russo. Hoje, o país não dispõe de um sistema que passe pelo Mar Cáspio, por isso ainda há muita dependência da Rússia, que continua sendo um aliado importante”, explica Bunder.
Rússia e Cazaquistão são membros da União Econômica Euroasiática, tratado que facilita a circulação de bens, capitais, serviços e pessoas e prevê políticas comuns em áreas estratégicas.
Quase 80% do petróleo cazaque é destinado à Europa – a Rússia não depende dessas reservas para garantir seu abastecimento.
Hoje, a preocupação da Rússia é conter o avanço das empresas ocidentais no Cazaquistão, aumentando a participação de suas estatais, como a LUKoil, na exploração do petróleo
Considerado um pilar da segurança energética da China, o Cazaquistão também é rico em cromo, chumbo, cobre, carvão, manganês e outros recursos minerais.
“Cerca de 75% do petróleo importado pelos chineses passa pelo Estreito de Malaca, na Malásia, e ao redor dessa região há grande presença de tropas norte-americanas. A China sabe que um eventual bloqueio desse estreito causaria uma disrupção no país. Por isso, uma alternativa terrestre como o Cazaquistão é fundamental”, enfatiza Bunder.
Além de fornecedor, o Cazaquistão é caminho obrigatório do gás produzido pelo vizinho Turcomenistão que também é importado pelos chineses – o que reforça sua importância na consolidação do projeto “Nova Rota da Seda”. Lançada pela China em 2013, essa iniciativa prevê décadas de investimentos nas áreas de transporte e infraestrutura para conectar o país asiático à Europa, ao Oriente Médio e à África por vias terrestres, além de estabelecer novas rotas marítimas que atravessem os oceanos Pacífico e Índico e permitam chegar ao Mar Mediterrâneo.
Revolução colorida?
Como Rússia e China não teriam interesse em desestabilizar o Cazaquistão, as suspeitas de participação nos protestos de janeiro recaem principalmente sobre as potências ocidentais – sem provas até o momento.
Para Pedro Rocha Fleury Curado, doutor em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a hipótese de que Europa e EUA teriam estimulado os distúrbios para se apropriar das reservas de petróleo e gás é frágil.
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“Juntos, os países da zona do euro, com destaque para Suíça e Países Baixos, representam a maior fonte de investimentos no Cazaquistão. Outros países da União Europeia [UE], como Alemanha e Itália, são importantes parceiros comerciais”, afirma o pesquisador.
“Já existe acesso a esse mercado, as grandes petrolíferas já estão no país. Se houve participação do Ocidente [nos protestos de 2022], faz mais sentido que a intenção tenha sido simplesmente criar instabilidade em uma zona de influência russa”, acrescenta.
Os protestos ocorreram em meio a negociações entre Rússia e EUA em temas ligados à Ucrânia – outra antiga república soviética, hoje aliada do bloco ocidental, da UE e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).
A crise no Cazaquistão pode ter sido uma forma de distrair os russos do front ocidental ligado à Ucrânia
“A Rússia deslocou tropas para a Ucrânia, criando clima para uma tomada militar e gerando tensão no Ocidente. Então, a crise no Cazaquistão pode ter sido uma forma de distrair os russos do front ocidental ligado à Ucrânia”, observa Curado, que é professor adjunto do curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ.
Tulio Bunder não descarta que o interesse por recursos naturais do Cazaquistão tenha motivado uma nova tentativa de revolução colorida. O termo caracteriza a participação oculta dos EUA em manifestações de oposição em países estratégicos, de modo a causar instabilidade política e abrir caminho para governos pró-Ocidente.
“Os EUA não têm interesse direto em explorar o petróleo do Cazaquistão para si. O que existe é um interesse macro, geopolítico, no sentido de garantir a independência energética da UE em relação aos hidrocarbonetos russos”, analisa.
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“A UE e os EUA formam o que podemos chamar de bloco ocidental, que atua com os mesmos interesses: primeiro, explorar recursos, mas também solapar a influência russa na região, dos pontos de vista energético, securitário e econômico. E, por mais que as petrolíferas do Ocidente já atuem no Cazaquistão, elas querem aumentar ainda mais sua participação.”
Em Tengiz, maior campo de petróleo do país, as companhias estadunidenses hegemonizam as operações desde o governo Nazarbaev. O consórcio que explora a área tem 50% de seu capital controlado pela Chevron e 25% pela ExxonMobil. A estatal cazaque KazMunaiGas controla 20%, e a russa LUKoil, 5%.
Nos anos 2000, ocorreram revoluções coloridas bem-sucedidas na Sérvia, Geórgia, Ucrânia e Quirguistão, às margens do território russo. Evitar processos semelhantes é um dos objetivos da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), aliança militar que reúne Cazaquistão, Rússia e outros quatro governos da região.
Foi graças a um contingente de 3 mil homens, enviado pela Rússia, que o governo cazaque conseguiu sufocar os protestos de janeiro.
Balanço favorável à Rússia
“Não foram as primeiras nem serão as últimas tentativas de interferência em assuntos internos dos nossos Estados. Não permitiremos novas revoluções coloridas”, afirmou o presidente russo Vladimir Putin, ao declarar vitória da OTSC no Cazaquistão.
A repressão aos protestos foi criticada pelos EUA, que negam ter participado das revoltas de janeiro e insistiram para que a Rússia retirasse suas tropas do país asiático – o que ocorreu na última semana.
Em tom mais moderado, um comunicado do Serviço Europeu para a Ação Externa (SEAE) pediu que as autoridades cazaques respeitem “o direito fundamental ao protesto pacífico”:
“O Cazaquistão é um parceiro importante para a UE e contamos com ele para respeitar os seus compromissos, incluindo a liberdade de imprensa e o acesso à informação online e offline”.
Outro gigante atento aos distúrbios no Cazaquistão, a China enviou mensagens de apoio a Tokayev e disse se opor a qualquer tentativa de desestabilização do atual governo.
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Se o que ocorreu no Cazaquistão foi uma tentativa de revolução colorida, Curado entende que a estratégia fracassou.
“Nos últimos dias, o Cazaquistão se aproximou da Rússia como nunca desde a independência”, analisa o professor da UFRJ.
“Internamente, esse processo resultou no fortalecimento de Tokayev, que destituiu membros do governo anterior que ainda ocupavam postos de comando – incluindo [o presidente antecessor] Nazarbaev, que chefiava o Conselho de Segurança do Cazaquistão.”
O balanço é tão favorável à Rússia e a Tokayev que adversários chegaram a especular que eles estariam por trás da escalada de violência nos protestos.
Curado cita outra hipótese de interferência estrangeira, envolvendo desta vez a Turquia, sem relação direta com gás, petróleo ou urânio. Os métodos aplicados nos protestos levantaram a suspeita de atuação de grupos armados que operam na Síria, ligados ao governo turco.
“A ideia, nesse caso, seria desestabilizar o Cazaquistão, empurrá-lo para a órbita da Rússia e desqualificá-lo como concorrente em uma disputa por hegemonia na Ásia Central. São referências concretas, relações causais que fazem sentido na geopolítica, mas não há comprovação. Por enquanto, são apenas hipóteses”, finaliza o pesquisador.