Por que o genocídio em Gaza pode ser chamado de genocídio

Israel lança uma nova fase de destruição no norte de Gaza, onde impede a entrada de ajuda humanitária, expulsa a população, ordena o fechamento de hospitais e dispara sobre civis, enquanto especialistas e relatores da ONU falam em genocídio

Numa declaração recente, 30 relatores das Nações Unidas reiteram que Israel está perpetrando um genocídio (Foto: UNICEF)

Por Olga Rodríguez*

Tradução: Marcelo Aguilar

Diante dos nossos olhos. Em tempo real. Com vídeos, fotografias, dados e testemunhos. Soldados israelenses mostram isso em suas próprias redes sociais. Massacres, destruição de infraestruturas, pilhagem de casas de civis, ordens de deslocamento, bombardeios contra escolas, centros médicos, campos de refugiados, padarias, bloqueio de ajuda humanitária, disparos de franco-atiradores contra famílias que tentam fugir, ameaças a jornalistas e declarações públicas que mostram intenção deliberada de causar danos e destruição.

“pelo menos 902 famílias de Gaza foram exterminadas, não sobrou ninguém, nem um único membro”

Nos últimos dias, foram conhecidos novos dados, contundentes. Há pelo menos 902 famílias de Gaza que foram exterminadas, das quais não sobrou ninguém, nem um único membro que possa proteger a memória do que algum dia foram. Em outras 1.364, apenas um membro sobreviveu. Pelo menos 17 mil menores perderam o pai, a mãe ou ambos. Os números oficiais indicam que há 42 mil mortos – dos quais mais de 14 mil são crianças – e 97.700 feridos, mas os cálculos mais conservadores do pessoal médico elevam o número de mortos para mais de cem mil.

Entre as vítimas mortais dos ataques israelenses estão pelo menos 986 médicos e profissionais de saúde, 135 jornalistas, mais de 500 professores e 220 trabalhadores da ONU. Foram descobertas grandes valas comuns contendo corpos não identificados. 85% das escolas foram danificadas ou destruídas, 80% das terras cultiváveis estão inutilizáveis, todas as universidades foram arrasadas – com soldados israelenses registrando seus bombardeios e celebrando diante das câmeras – e mais de 80% dos hospitais estão danificados ou incapazes de funcionar, de acordo com dados de organizações internacionais e das Nações Unidas. Israel lançou mais de 80.000 toneladas de bombas em Gaza.

A grande maioria da população enfrenta falta de alimentos, água potável e medicamentos devido ao bloqueio israelense à ajuda humanitária necessária, causando fome, doenças e morte. Os médicos têm tido que realizar “operações sem anestesia e ver crianças morrerem no chão do hospital por falta de recursos”. Pacientes com diabetes, câncer ou hepatite não têm acesso aos tratamentos mais básicos. Os ataques a hospitais e as ordens de deslocamento forçado e evacuação de centros médicos causaram o colapso do sistema de saúde, provocando mais mortes.

Uma nova fase de destruição no norte

A isto soma-se a nova fase de destruição contra o norte de Gaza. Desde o passado dia 1 de outubro, Israel tem impedido a entrada de ajuda humanitária, lançado ataques diários contra civis e promovido um deslocamento forçado da população para o sul, com ordens de evacuação dos únicos três hospitais que permaneceram operacionais, o que está afetando gravemente doentes e feridos. Em apenas doze dias, o exército israelense matou e feriu centenas de palestinos, incluindo crianças, mulheres, profissionais de saúde e jornalistas. A data de início desta operação coincide com a invasão terrestre israelense do Líbano, pelo que grande parte da atenção internacional foi desviada da Faixa.

Entre os alvos atacados no norte de Gaza há escolas, campos de refugiados, a única grande padaria que permaneceu aberta na zona ou um centro de cuidados de desnutrição, onde várias mulheres e crianças morreram enquanto esperavam na fila pela sua vez, segundo relata a UNICEF.

A Organização Mundial da Saúde denunciou que Israel negou a entrada dos seus suprimentos nos hospitais do norte sete vezes consecutivas, e a Agência da ONU para os Refugiados Palestinos alerta que “pelo menos 400 mil pessoas estão presas na área”. As Nações Unidas indicam que há abrigos e serviços da sua agência que foram forçados a fechar pela primeira vez, e que “a fome está se espalhando e se aprofundando novamente”.

Da área de Jabalia, o Dr. Ezzideen Shehab relata que “o exército israelense forçou-nos a fugir pela terceira vez. As pessoas andam pelas ruas sem saber para onde ir, como se estivessem indo para a forca, cheias de medo. O hospital onde trabalhava fechou completamente devido aos contínuos bombardeios contra tudo o que se move. O que está acontecendo aqui é um verdadeiro genocídio organizado”.

A tudo isto acrescenta-se o anúncio de um novo plano israelense que visa proibir a presença e as atividades em Gaza e na Cisjordânia da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos (UNRWA), que apoia serviços médicos e educacionais, essenciais para a sobrevivência da população. “Estes planos são inaceitáveis”, denunciou o diretor da Organização Mundial da Saúde. “Seria uma catástrofe”, alertou o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

Mais denúncias de genocídio por vozes de especialistas

As provas de genocídio em Gaza continuam a crescer, assim como as vozes dos especialistas que insistem nisso. As declarações dos líderes israelenses que expressam o desejo de destruição constituem em si mesmas provas que foram apresentadas ao Tribunal Internacional de Justiça, no âmbito do processo de genocídio contra Israel.

Nos últimos meses, dois grandes especialistas neste tema, altamente respeitados nas suas áreas, salientaram que estamos perante um genocídio, que marcou um antes e um depois nos circuitos ligados aos direitos humanos e ao direito internacional. São eles o historiador Omer Bartov, judeu israelense, professor universitário de Estudos do Holocausto e Genocídio, e Arieh Neier, judeu sobrevivente do Holocausto, cofundador da organização Human Rights Watch e um dos responsáveis ​​pela criação do Tribunal Penal Internacional.

Em novembro de 2023, ambos consideraram que não havia provas suficientes para falar em genocídio. A passagem do tempo e a repetição de padrões os fizeram mudar de opinião.

Numa declaração recente, 30 relatores das Nações Unidas reiteram que Israel “está perpetrando um genocídio”

Bartov denunciou os ataques israelitas a Rafah, lançados em maio passado, como “ações genocidas”. Ele considera que estes bombardeios mostraram “um total desrespeito por quaisquer normas humanitárias e indicaram claramente que o objetivo final desde o início era tornar toda a Faixa de Gaza inabitável e enfraquecer a sua população até ao ponto da extinção ou da fuga”. Além disso, afirma que Israel agiu “com a intenção de destruir, no todo ou em parte” a população palestina de Gaza, “matando, causando danos graves ou infligindo condições de vida destinadas a provocar a destruição do grupo”. Esta é precisamente a definição legal de genocídio na Convenção das Nações Unidas.

Por sua vez, o especialista Aryeh Neier escreveu em Junho que “Israel está envolvido num genocídio contra os palestinos em Gaza”. A sua acusação centra-se na “repetida obstrução” à entrada de ajuda humanitária na Faixa por parte de Israel, com um “efeito acumulativo” que causou o colapso do sistema de saúde e um contexto de fome e doenças.

Outros especialistas expressaram-se na mesma linha, como Amos Goldberg, professor de História do Holocausto na Universidade Hebraica, autor de um artigo em maio passado intitulado “Sim, é genocídio”, Raz Segal, professor de Genocídio e Holocausto na Universidade de Stockton, que fala de “um genocídio de manual” ou o professor Francis Boyle, o primeiro advogado a obter medidas de proteção contra o genocídio perante um tribunal (caso Bósnia, 1993). Também o especialista em genocídio Martin Shaw, com um olhar multidisciplinar, enfatiza que em Gaza existe uma “destruição social com um elemento genocida”.

“As denúncias políticas não são suficientemente contundentes, nem as medidas de pressão”

Trinta relatores das Nações Unidas pronunciaram-se da mesma forma esta semana, num comunicado em que denunciam que Israel “está perpetrando um genocídio”, com “ataques genocidas, limpeza étnica e castigos colectivos”. Há meses que a relatora da ONU para a Palestina, Francesca Albanese, fala em genocídio. No seu relatório, apresentado em março e intitulado “Anatomia de um genocídio”, detalha as provas e destaca o bloqueio da ajuda e o contexto da fome e da doença como prova de intenção.

Também o Instituto Lemkin para a Prevenção do Genocídio – que leva o nome do advogado judeu que criou o conceito jurídico de genocídio – alerta que estamos perante o desenvolvimento de um genocídio em Gaza.

Tudo isto está sendo investigado no âmbito do processo de genocídio contra Israel no Tribunal Internacional de Justiça, de onde foram emitidas ordens cautelares exigindo a entrada de ajuda suficiente em Gaza, algo que Israel continua não cumprindo dia após dia, aumentando os danos contra a população civil.

Na Espanha, o Centro Dèlas de Estudos para a Paz também utiliza o termo genocídio no seu último relatório sobre Gaza, no qual explica que o utiliza no sentido fornecido pela Real Academia da Língua – “extermínio ou eliminação sistemática de um grupo humano devido à raça, etnia, religião, política ou nacionalidade” – sem ter que esperar por uma decisão judicial que pode nunca chegar.

Nos circuitos de direitos humanos, centenas de juristas tentam defender o direito internacional. Mas noutros espaços, os assassinatos, o bloqueio da ajuda humanitária e as novas ordens israelenses de deslocamento forçado continuam sendo minimizados, num esforço para minimizar a gravidade do que está acontecendo. As denúncias políticas não são suficientemente contundentes, nem as medidas de pressão. Assim, neste ponto, entre ambiguidades e eufemismos, o genocídio continua e a impunidade avança.

* Artigo publicado originalmente em eldiario.es, traduzido e publicado sob autorização da autora. Olga Rodríguez é jornalista espanhola, especializada em informação internacional, Oriente Médio e direitos humanos.

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