Presidente espalha narrativa na qual é vítima da empresa responsável pelo desastre econômico do país
Por Guilherme Weimann*, publicado originalmente no Brasil de Fato
Em 2016, a palavra do ano escolhida pelo Dicionário Oxford foi “pós-verdade”. Na definição do próprio dicionário, o verbete se refere a “circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal”.
O termo ganhou popularidade justamente na campanha de Donald Trump à Casa Branca e no plebiscito do Brexit. Na prática, refere-se à máquina de produção e disseminação de fake news (notícias falsas) focadas na manipulação da opinião pública sobre determinados temas ou projetos específicos.
No Brasil, a existência de notícias falsas não é propriamente um fenômeno contemporâneo – inclusive, parte da mídia corporativa consome dessa água há muitas décadas. Entretanto, sua utilização de forma orquestrada e concentrada como estratégia política pode, sim, ser considerada um fenômeno recente.
Dentro dessa ótica, as fake news começaram a pipocar nos governos petistas e atingiram seu ápice durante as disputas eleitorais de 2018. Uma foto da então candidata à vice-presidência Manuela d’Ávila vestindo uma camiseta com os dizeres “Jesus é travesti”; um “kit gay” que teria sido distribuído a crianças durante os governos petistas; uma “mamadeira de piroca” que teria sido ofertada nas escolas de São Paulo durante a gestão municipal de Fernando Haddad. Essas foram algumas das inúmeras notícias falsas que foram criadas no decorrer da corrida eleitoral, que resultou na ascensão de Jair Bolsonaro ao posto de comando do Executivo.
Antes da vitória de Bolsonaro, entretanto, a jornalista Eliane Brum – que dispensa apresentação – cunhou a expressão “autoverdade” em um artigo publicado na extinta edição brasileira do jornal El País. Segundo ela, diferentemente da pós-verdade, que é a substituição de verdades baseadas em fatos por mentiras produzidas para falsificar a realidade, o valor da autoverdade “está muito menos no que é dito e muito mais no ato de dizer”.
A autoverdade, que não é exclusiva de Bolsonaro – mas utilizada com primor por ele e pelos integrantes do seu governo –, desloca para cada indivíduo o poder de construir sua própria verdade
Ou seja, o ato de proferir uma infinidade de “opiniões” tomou o lugar de importância do conteúdo do que é dito. Na visão de Brum, “a estética é decodificada como ética” ou “colocada no mesmo lugar”. Ou seja, a autoverdade, que não é exclusiva de Bolsonaro – mas utilizada com primor por ele e pelos integrantes do seu governo –, desloca para cada indivíduo o poder de construir sua própria verdade.
Por isso, quem trabalha a partir da lógica dos fatos comprováveis não consegue mais competir com Bolsonaro, que opera com base na autoverdade – esta, por sinal, “atravessa o discurso fundamentalista como conceito e como estética”. Isso se reflete na dificuldade em contrapor as falácias que ele criou sobre os mais diversos temas – alguns mais ou menos estratégicos.
Um dos exemplos mais elucidativos desse mecanismo é a narrativa criada em torno da Petrobrás – a maior empresa brasileira de economia mista. Em consonância com as oscilações dos preços dos combustíveis, a profusão de “autoverdades” sobre ela têm crescido exponencialmente nos últimos dois anos.
No início de 2021, Bolsonaro transferiu a responsabilidade pelos altos preços dos derivados de petróleo no país aos governadores – devido à cobrança do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) –, apesar da porcentagem das tributações estaduais se manterem as mesmas há anos.
Nesse mesmo período, Bolsonaro demitiu o presidente da Petrobrás, Roberto Castello Branco, que havia sido indicado por ele mesmo. Na ocasião, o chefe do Executivo Federal chegou a dizer que o economista ficou “11 meses sem trabalhar”, período no qual cumpriu home office devido à pandemia de covid-19.
A ascensão do general Joaquim Silva e Luna ao comando da Petrobrás – indicado por Bolsonaro, é importante frisar – não modificou em nada a política de preços da companhia implementada em 2017. O Preço de Paridade de Importação (PPI) continuou em pleno vigor, levando em consideração a variação do barril de petróleo no mercado internacional, a cotação do dólar e os custos estimados para se importar combustíveis para o Brasil.
De acordo com cálculos da Federação Única dos Petroleiros (FUP), desde a sua implementação, o PPI foi responsável por reajustes nas refinarias da Petrobrás de 349,3% do gás de cozinha, 155,8% da gasolina e 142,3% do diesel. Ou seja, é o grande responsável por engordar o bolso dos acionistas e onerar a população brasileira.
Por isso, após mais um aumento de combustível anunciado pela empresa em março deste ano, Bolsonaro afirmou que “a Petrobrás demonstra que não tem qualquer sensibilidade com a população, é a Petrobrás Futebol Clube e o resto que se exploda”. Dias depois, deu uma declaração dizendo “a Petrobrás não colabora em nada”, que não possui poderes sobre a empresa e que ela “poderia ser privatizada hoje”.
Menos de uma semana depois, reafirmou que não poderia interferir na companhia, “porque o próprio pessoal da Petrobrás, a começar pelo presidente, responderia criminalmente por ter aceitado uma interferência nesse sentido”. Mesmo assim, exatamente uma semana após essa entrevista, demitiu o general que estava à frente da petroleira.
Depois disso, já trocou a presidência da companhia mais duas vezes, além do comando do Ministério de Minas e Energia. Seu novo ministro, aliás, anunciou logo após tomar posse que uma de suas prioridades à frente da pasta é viabilizar um estudo para privatizar a Petrobrás, com o aval do ministro da Economia, Paulo Guedes.
Bolsonaro se coloca como vítima de uma empresa que, na visão que constrói, só pensa nos seus interesses e, por isso, deve ser privatizada
No encontro entre ambos os ministros, inclusive, o “Posto Ipiranga” (não poderia existir nome mais sugestivo) se irritou com a manifestação de sindicalistas e bradou: “Não quero falar de quem roubou a Petrobrás, assaltou a Petrobrás durante anos, roubaram, foram condenados, não quero falar isso”. E completou: “Nós vamos devolver ao povo brasileiro o que é deles, está certo?”.
A partir dessa retrospectiva, fica evidente o jogo discursivo do governo: Bolsonaro se coloca como vítima de uma empresa que, na visão que constrói, só pensa nos seus interesses e, por isso, deve ser privatizada. Bolsonaro esquece de dizer que, na verdade, quem escolhe 6 dos 11 nomes do Conselho de Administração (CA) da Petrobrás é justamente ele e seu governo.
Ou seja, Bolsonaro foi justamente o responsável por indicar todos os membros do CA da Petrobrás que, desde 2018, mantiveram as diretrizes gestadas durante o governo de Michel Temer: privatizações, preços dos combustíveis alinhados ao mercado internacional e altas cifras para os acionistas. Além disso, foi a equipe econômica de Bolsonaro a causadora da desvalorização do real, que penaliza os consumidores porque, atualmente, produz-se combustível em real, mas cobra-se em dólar.
Entretanto, se a estratégia de manipulação de Bolsonaro é evidente (pelo menos para quem provavelmente está lendo este texto), realizada a partir de “autoverdades” proclamadas recorrentemente sobre o assunto, gostaria de refletir sobre o processo oposto – o de quem se coloca contrário à privatização da empresa.
Pesquisa recente realizada pelo Ipespe mostrou que 49% dos brasileiros ainda são contrários à privatização da Petrobrás, 38% são favoráveis e 13% se declararam indecisos. Entretanto, é necessário olhar esses números em perspectiva.
As três últimas pesquisas (2015, 2017 e 2019) realizadas pelo Instituto Datafolha sobre o assunto demonstraram que a opinião dos brasileiros sobre a privatização da Petrobrás oscilou ao longo dos anos: a porcentagem de contrários à privatização da Petrobrás foi de 61%, 70% e 65%, respectivamente. Ou seja, levando em consideração a última pesquisa do Datafolha e do Ipespe, a porcentagem de brasileiros contrários à privatização da companhia diminuiu de 65% para 49%, uma queda de 16%.
A pesquisa do Ipespe também apontou que a Petrobrás aparece como principal responsável pelos altos preços dos combustíveis – 64% dos entrevistados responderam que ela tem “muita responsabilidade”. Bolsonaro é apontado como muito responsável por 45%, seguido pela guerra na Ucrânia (45%), governadores (40%) e governos petistas (37%).
Na minha opinião, esses dados demonstram que Bolsonaro tem sido certeiro na sua estratégia discursiva de dizer “tudo” sobre o assunto, sem nenhum apego à veracidade do seu conteúdo, embaralhando o entendimento da opinião pública. Com isso, diminuiu o número de defensores do caráter estatal da Petrobrás – que se tornou a grande responsável pelos preços dos combustíveis que impactam diretamente na inflação.
Se dissermos para as pessoas que a Petrobrás é estatal, o argumento de que a solução é privatizá-la se encaixa como uma luva
Mas como desconstruir esse discurso? Diversos companheiros do movimento sindical abominam o termo “reestatizar” a Petrobrás, com a justificativa de que isso seria a resignação com a derrota. Pois eu acho justamente o contrário. Como convencer a população, que passou a cozinhar a lenha e vê o preço dos alimentos aumentar descontroladamente, de que é importante manter o caráter estatal de uma empresa que dia após dia causa um rombo no seu bolso? Se dissermos para as pessoas que a Petrobrás é estatal, o argumento de que a solução é privatizá-la se encaixa como uma luva. É preciso fazer um movimento oposto – que, na minha opinião, é simplesmente encarar e expor os fatos de forma realista.
Tecnicamente, o Estado brasileiro continua como controlador da Petrobrás – com 50,26% das ações ordinárias (com direito à voto). Investidores privados estrangeiros detém 41,66% dessas ações, seguidos por investidores privados brasileiros (8,08%). Entretanto, é necessário debruçar-se sobre quem tem se beneficiado efetivamente com os preços abusivos dos combustíveis – e das privatizações realizadas nos últimos anos.
Nesse caso, precisamos olhar para a composição acionária total da Petrobrás, que se refere aos que realmente têm direito aos ganhos da empresa: acionistas privados estrangeiros detém 44,49%; acionistas privados brasileiros 18,90% e o Estado apenas 36,61%. Por isso, somente no primeiro trimestre deste ano, por exemplo, o equivalente a 19 estádios do Corinthians foram transferidos em forma de dividendos da Petrobrás para investidores de fora do país.
É hora de avançar na nossa narrativa ou corremos o risco de sermos tragados pela estratégia discursiva de Bolsonaro. Não estamos mais angariando apoiadores com uma pauta que, se não for explicada (e não temos tempo para isso), corre o risco de se tornar inacessível.
Por isso, acredito que é urgente virarmos a chave: é hora de reestatizar a Petrobrás! E devolver, de fato, o que ao povo brasileiro é de direito.