Memórias: “A memória deve ser uma semente para o futuro”, define Spis

Demitido na primeira greve dos petroleiros, em 1983, Antonio Carlos Spis fundou posteriormente o Sindipetro São Paulo, tornou-se o primeiro coordenador da Federação Única dos Petroleiros (FUP) e comandou a categoria na sua maior paralisação, em 1995

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Spis também presidiu a CUT São Paulo entre 2000 e 2003

Por Guilherme Weimann

O conceito de democracia remonta à Grécia antiga, quando os cidadãos – excluindo-se mulheres, estrangeiros e pessoas escravizadas – passaram a decidir os rumos políticos coletivos por meio do voto realizado em grandes assembleias. Nesse contexto, de evolução – apesar de limitada –  em relação à participação popular, também foi instaurado o que ficou conhecido como “ostracismo”.

O mecanismo surgiu para evitar que déspotas – aristocratas contrários aos avanços democráticos – instalassem tiranias que poderiam suprimir ou impedir o pleno funcionamento do sistema recém-criado. Para isso, os cidadãos votavam pelo exílio de quem representava esse risco, que a partir de então era obrigado a se retirar da região de Atenas pelo período de 10 anos.

Se a prática surgiu para combater um modelo retrógrado, ao longo da história o ato de exilar dissidentes políticos foi utilizado, principalmente, por regimes autoritários. As ditaduras da América Latina do século XX são os exemplos mais próximos, do ponto de vista temporal, da expulsão de milhares de pessoas contrárias, por exemplo, às práticas de tortura e supressão de direitos por parte dos militares.

Ser petroleiro é ter uma missão, uma missão que você começa a conhecer quando se envolve com mobilização. Não é só missão de ir trabalhar, receber um dinheirinho e voltar pra casa, não é isso.

Mas o exílio, do ponto de vista filosófico e prático, expandiu-se para toda a estrutura social e até mesmo individual – já que é possível se sentir exilado emocionalmente da sua própria vida, com responsabilidades e deveres impostos por um modelo de sociedade em que a alienação é um sintoma difícil de driblar. 

E foi justamente essa a estratégia utilizada pela Petrobrás para dividir as lideranças da primeira greve dos petroleiros, realizada em julho de 1983. A paralisação foi o ápice de um longo processo de conscientização da categoria, influenciada por um momento político pujante, marcado pelas massivas mobilizações dos metalúrgicos do ABC e pela criação do principal instrumento de aglutinação da classe trabalhadora – o Partido dos Trabalhadores (PT).

Foram seis dias em que os trabalhadores das refinarias de Paulínia e Mataripe, localizadas no interior de São Paulo e na região metropolitana de Salvador (BA), respectivamente, cruzaram os braços contra o plano da ditadura militar, que previa demissão em massa e diferenciação de direitos entre os empregados da Petrobrás.

Foram dias intensos, com os petroleiros literalmente ocupando as ruas e praças para tentar romper a censura e expor os motivos da greve que, como pano de fundo, reivindicava o próprio futuro da empresa, ameaçado pela ideologia liberal ascendente. Mas, como todo ápice, o fim da greve também marcou um dos períodos mais difíceis para o movimento sindical e, particularmente, para as 358 famílias dos petroleiros demitidos em listas divulgadas em jornais de todo o país. 

Um desses demitidos foi Antonio Carlos Spis, então diretor do Sindicato dos Petroleiros de Paulínia, sediado em Campinas. E, como uma das lideranças, atuou ao lado do presidente da entidade, Jacó Bittar, pelo retorno dos demitidos: “O comandante Baltazar, que negociava com a gente, fez três listas. Uma dos que podiam retornar às suas bases imediatamente; outra dos trabalhadores que podiam retornar à Petrobrás, mas para outras bases que não Paulínia e Mataripe; e, por fim, uma lista de 22 trabalhadores que continuariam demitidos. Eu voltei com essa lista do Rio de Janeiro, eu e Jacó. E o primeiro nome da lista que não voltava era o meu. Aí o Jacó falou: ‘Não valeu essa lista aí’. Eu falei: ‘Valeu sim pô, foda-se. Vamos colocar como vitoriosa a nossa negociação com a Petrobrás, porque está voltando 90% dos grevistas, entendeu? Nós vamos voltar depois’. Não adianta, abriu a porteira, a gente voltaria depois, eu tinha certeza”.

E ele estava correto, já que sua readmissão foi oficializada em 1985, dois anos após a greve. Entretanto, a Petrobrás utilizou a antiga estratégia de ‘exilar’ as principais lideranças políticas de suas bases de trabalho originais. “Fui readmitido em 1985, mas voltei efetivamente a trabalhar apenas em 1987, porque fiquei à frente das negociações para o retorno do restante dos demitidos. Então, em 1987, comecei a trabalhar na Rua dos Ingleses, em São Paulo, num escritório administrativo, junto com o Demétrio [Vilagra], [Francisco de Paula Garcia] Caravante e mais alguns que haviam sido demitidos na greve”.

O que a Petrobrás não previa era que o aparente “ostracismo” ao qual foram relegados os trabalhadores, na verdade, seria a consolidação de um dos maiores dirigentes da categoria e da classe trabalhadora brasileira e a gênese do movimento sindical petroleiro na capital paulista e nas cidades do seu entorno. 

Confira abaixo a entrevista, editada e organizada, de Antonio Carlos Spis concedida ao projeto Memórias:

Origens

Meu nome é Antonio Carlos Spis. Eu nasci em uma família pobre no bairro do Bosque, em Campinas, num sítio do meu avô. Meu avô cultivava flores e meu pai era motorista de caminhão da Brahma. Minha mãe era doméstica, do lar, como se dizia. Tenho também uma irmã mais velha. 

Meu pai morreu quando eu tinha nove anos, de câncer na laringe, e aí a minha irmã foi trabalhar na distribuidora de bebidas que ele trabalhava, pra começar a ajudar a casa. Mas minha mãe não quis ficar no sítio com a minha avó, e foi pro outro lado da cidade. Foi morar num porão na casa do irmão dela. E a vida foi se construindo assim. 

Meu pai tinha deixado três terrenos, um atrás do estádio do Guarani, que minha irmã mora atualmente, e dois no Jardim Leonor. Então minha mãe negociou com o juiz – que nós éramos menores – e vendeu um terreno pra construir uma casinha no outro, porque nós estávamos sem casa. Isso foi feito e trabalhei muito nessa casa. Tinha um tio que era encanador e eletricista, que foi quem fez a obra, com a ajuda dos amigos e parentes. Eu sempre estive junto pra ajudar a carregar tijolo. 

Eu era moleque, jogava bola num campinho que tinha no final da Barão de Paranapanema. O terreno era do meu pai, inclusive. Tinha um campinho ali, do Ipiranguinha. Nosso time chamava Ipiranguinha, jogava bola ali com a turma. Mas pela necessidade de sustentabilidade da família, eu e minha irmã saímos pra trabalhar. Minha irmã se formou em Contabilidade. Eu não me formei em nada porque o micróbio sindical me pegou, e acabei não concluindo Matemática da PUC.

Petrobrás e sindicalismo

Eu entrei na Petrobrás no dia 1º de julho de 1973, na Refinaria de Paulínia, que havia sido inaugurada no ano anterior. Lá eu fiquei 10 anos, no setor de recursos humanos, no regime administrativo.

O sindicato entrou na minha vida pouco tempo depois, quando a diretoria, que tinha o Jacó Bittar como nossa maior liderança, o Alencar, o Caravante, o Paulo Acácio, começaram a formar uma chapa para concorrer às próximas eleições e me convidaram para fazer parte. Além de mim, a Esther e a Wanda, que também trabalhavam no administrativo, passariam a fazer parte da nova diretoria.

Então comecei a participar da formação de chapa. Eu era meio rebelde, isso garantiu que eles chegassem até mim, porque o sindicato sempre procura os mais briguentos. Aí logo na primeira reunião eu disse: “Olha, eu não quero sair liberado de cara”. Queriam que eu fosse liberado de cara. Falei: “Não, não, quero fazer o primeiro mandato na base e depois, no segundo mandato, a gente pode conversar”.

Mas com apenas nove meses de mandato eu fui cassado e demitido. Aí começou uma outra etapa da minha vida.

Greve de 1983

O governo publicou um decreto que estagnou o salário. Além disso, João Batista Figueiredo, o último ditador, assinou uma carta de intenções do FMI, que deixava muito evidente que teria demissão em massa. Além de não ter reposição salarial, estagnar a categoria, ia ter demissão. 

Aí começamos a exigir do Murilo Macedo, que era o Ministro do Trabalho, que nos desse um documento de que não haveria demissão. Isso não saía. A gente começou a informar à base: “Oh, o perigo da demissão é real, tá aqui na carta de intenção do FMI, junto com o decreto-lei”. E aí a categoria veio numa assembleia com umas 600 pessoas, que decidiram pela greve. A partir de então, começamos a fazer reuniões com os grupos que estariam na refinaria na véspera da greve, para já ficar lá dentro, e trabalhar pela greve estando lá dentro. 

Todo mundo andava muito preocupado na rua, porque tinha policial disfarçado de trabalhador durante a greve, pra fiscalizar a gente: quem falava, quem não falava, pra entregar depois para a demissão. Aí começou o receio, né, porque a ditadura, incluindo o Shigeaki Ueki, que era o presidente da Petrobrás – um filho da puta – jogava pesado. Eles mandavam os vigilantes nas casas das pessoas dizendo que ia ter demissão.

A gente ficava no Teatro de Arena e às vezes recebia uma notícia: “Ah, tem um grupinho lá no Largo do Pará, tem pelego por lá”. Daí falavam lá o nome do pelego da refinaria, tentando arregimentar uns caras para furar a greve. Mas a gente ficava firme lá no teatro, agitando no microfone e cobrindo as necessidades. Até que veio a notícia de que o exército tinha invadido o sindicato. 

Aí o Luiz Eduardo Greenhalgh e o Jacó foram para o sindicato. A gente continuou lá com os grevistas, porque precisava dar esse apoio. Me impressionou quando eu subi na escadinha ali, e tava CCC na parede, Comando de Caça aos Comunistas, em vermelho. Então eles faziam estratégia assim, pra impressionar. Eu não tinha estrutura ainda para enfrentar muitas situações, mas o pessoal do sindicato tinha, então você ficava junto, você se sentia seguro para enfrentar estando junto com todo mundo, entende?! 

Depois disso houve a intervenção no sindicato e eles indicaram um interventor. Eu fui para o sindicato, junto com alguns companheiros, e a gente disse pra ele: “Oh, você não pode demitir, você não pode admitir, e nós vamos ficar dentro do sindicato”. A gente foi duro com o interventor. Ficou um tempinho aqui e não nos aguentou, porque a gente andava pra cima e pra baixo: “Filho da puta, pelego”. Mandava caixa com aranha dentro pra casa do cara, imagina?! Aí ele não aguentou, tiraram o cara e indicaram três interventores da base: o Modesto, um tal de Brasil e o outro eu não lembro. Três pelegos da pior raça que tem, pior espécie que tem. Não sei se já morreram, espero que sim.

E a gente participava de tudo, não saía do sindicato. Daí eles chamavam assembleia pra aprovar as contas, a gente recusava. Isso os obrigou a chamarem a eleição, que a gente ganhou, com o Salvador Botteon como presidente. Essa foi a retomada do sindicato.

Luta pela readmissão

Eu tinha certeza de que a gente voltaria. Nós fomos cassados antes da paralisação da refinaria e isso não caracteriza greve, entende?! Eles se precipitaram. Esse foi o mote para que a gente resgatasse o direito de voltar. 

Em um momento a gente foi procurar o Tancredo Neves, que era então candidato à presidência. Ele falou assim: “Ah, tá bom, tô convencido, quando eu tomar posse vocês voltam. Quando eu for eleito no colégio eleitoral, quando subir a rampa do Palácio no Planalto, vou reintegrar todo mundo”. Eu não acreditei muito, pedi um documento, mas ele disse: “Aqui não tem documento, não tem nada, tem minha palavra”. 

Aí a gente volta pra Campinas, conta sobre a reunião e foi um auê, né. As pessoas estavam esperando a gente. Mas aí ele [Tancredo Neves] vai e morre. Daí a gente começou a procurar uma alternativa. A gente procurou o Aureliano Chaves, que era o Ministro de Minas e Energias, que participou de algumas reuniões com o Tancredo. Nesse embate da argumentação, de que a greve foi em defesa da empresa, ele falou: “Olha, não vai ser como o Tancredo falou, Nós vamos montar uma comissão tripartite, para negociar a volta, porque tem algumas pessoas que não podem mais voltar, você é um deles”, falou pra mim. E continuou: ”Jacó é outro, Germino é outro”. Germino era o presidente do Sindipetro Bahia. Jacó presidente aqui.

Só que teve uma eleição para delegado sindical aqui no sindicato. Aí eu entrei como candidato. Entrei como candidato e o pessoal do Rio de Janeiro, da Petrobrás, um tal de comandante Baltazar, disse: “Spis, se você sair candidato, nós vamos demitir todo mundo que já voltou”, porque já tinha começado um processo de retorno. Quem negociava era eu, o Jacó Bittar e um baiano, o Germino [Borges], além de três da empresa. Era uma comissão tripartite. E aí, nem fodendo, participei e ganhei a eleição. 

Ganhei, só que ao invés de tomar posse, eu fiz um discurso, abri mão e entraram dois no meu lugar, era pra entrar só um. Entrou o Wagner Luiz Constantino de Lima e mais um, não sei quem era o outro. Então o sindicato ficou com cinco diretores liberados.

Então eu fiquei com esse trunfo, porque o Baltazar falou pra mim, lá na reunião: “Spis, para com isso cara, nós vamos mandar você pra Manaus, você vai organizar o almoxarifado de Manaus”. Eu respondi: “Que isso cara? Eu sou de Campinas, vou para Manaus fazer o que?”. E ele retrucou: “Não sei o que”. Daí eu falei: “Tá bom, eu vou”. Só que eu era o cabeça da negociação grevista, dessa comissão tripartite.

O comandante Baltazar fez três listas. Uma dos que podiam retornar às suas bases imediatamente; outra dos trabalhadores que podiam retornar à Petrobrás, mas para outras bases que não Paulínia e Mataripe; e, por fim, uma lista de 22 trabalhadores que continuariam demitidos. Eu voltei com essa lista do Rio de Janeiro, eu e Jacó. E o primeiro nome da lista que não voltava era o meu. Aí o Jacó falou: ‘não valeu essa lista aí’. Eu falei: “Valeu sim pô, foda-se. Vamos colocar como vitoriosa a nossa negociação com a Petrobrás, porque está voltando 90% dos grevistas, entendeu? Nós vamos voltar depois”. Não adianta, abriu a porteira, a gente voltaria depois, eu tinha certeza.

Fui readmitido em 1985, mas voltei efetivamente a trabalhar apenas em 1987, porque fiquei à frente das negociações para o retorno do restante dos demitidos. Então, em 1987, comecei a trabalhar na Rua dos Ingleses, em São Paulo, num escritório administrativo, junto com o Demétrio [Vilagra], [Francisco de Paula Garcia] Caravante e mais alguns que haviam sido demitidos na greve.

Sindipetro São Paulo

Em São Paulo eu encontrei uns comunistas, que atrapalharam muito a formação do sindicato. Porque eles não queriam fazer sindicato. Eles queriam que tivesse um escritório em São Paulo, com negociação para o prédio do EDISE [Edifício Sede da Petrobrás]. Eles não queriam mobilização. Eram uns velhos pelegos, né. Eu falei pra mim mesmo: “Não, nem fodendo”. Pra mim precisava de luta. Então a gente foi fazendo, fazendo e eles foram sendo descartados, foram caindo fora. 

Eu consegui pegar uma sala primeiro no centro de São Paulo. Só que no começo, eu ficava sozinho lá, não comparecia ninguém. Eu indicava que na terça-feira que vem, no plantão sindical de São Paulo, seria discutida a AMS, mas eu ficava que nem tonto lá, sozinho, e ninguém aparecia. Mas valeu a pena. Eu fui fazendo e começaram aos poucos a aparecer um e outro, até que chegou ao ponto que tinha já condição de fundar o sindicato. 

Só que a atuação sindical não podia ser focada apenas nos prédios administrativos. Havia gente em São Caetano, Barueri, Guarulhos, Guararema e Suzano. Eu corria essas bases de domingo. Eu vinha, pegava um carro emprestado aqui do sindicato, em Campinas, e ia pra São Paulo entregar o boletim de domingo nessas bases, porque tinha turno. E aí aos poucos eu fui conseguindo sensibilizar pessoas do turno para entrar na chapa. Então, quando fundou a chapa, 70% era de administrativo. Aí eu conseguia dois de Barueri, um de Guarulhos, um de São Caetano e por aí vai. 

O sindicato foi fundado em 1987, eu como presidente, o Jacaré secretário-geral, e a Verinha, do escritório de São Paulo, tesoureira. Esse foi o trio liberado. 

Federação Única dos Petroleiros

Naquela época [início da década de 1990], existia uma tal de FENAP [Federação Nacional dos Petroleiros]. A FENAP se entendia a representante da categoria. Cheguei em Brasília, na sede da FENAP, peguei a placa, quebrei e falei pras duas funcionárias: “Oh, essa porra aqui não chama FENAP, chama a partir de agora FUCP [Federação Única Cutista dos Petroleiros]. Depois, no estatuto de fundação, em 1994, a gente a transformou em FUP, Federação Única dos Petroleiros. E eu fui eleito o primeiro coordenador. 

Então me mudei pra Brasília, morava lá nessa casa, numa casa grande, dois andares. Ali a gente foi construindo uma identidade de FUP. Porque a gente tinha que negociar com a Câmara, com o Senado, Judiciário e dialogar com outros setores. 

Greve de 1995

A gente já tinha feito greves preventivas, quando o Collor ameaçou demitir em massa. Tinha feito algumas outras greves também em anos anteriores. Foi como um aquecimento, digamos assim, uma greve vai construindo a outra. No setor do petróleo eu avalio que você faz uma greve, tem demitidos, na próxima greve você reintegra esses demitidos e arranja outros demitidos, é cíclico. É um ciclo que a gente, no fim, consegue reverter as demissões, já que nunca abandonamos um lutador. Nunca abandonamos ninguém. 

Nesse contexto, eu estava na FUP, na cabeça da categoria. A nossa data base do ano anterior, em 1994, foi em setembro. A gente fez greve, levou cacetada, depois fez outra greve, levou cacetada, então falei: “Oh, a gente precisa ampliar nossas costas pra porrada, é o único jeito, precisa ir para o Congresso e Senado, porque esses bostas da Petrobrás são uns capachos do governo FHC”.

E além disso a gente precisava de apoio de outras categorias de peso, o que realmente ocorreu. O metrô de Brasília fez greve, os eletricitários fizeram a greve, um monte de categoria… Então a gente fazia reuniões com os representantes dessas categorias e da CUT também. Geralmente eles indicavam o Marcelo Sereno, que era um dirigente sindical, do Rio de Janeiro, diretor nacional da CUT, que vinha nas discussões conosco aqui, de organização de greve. E com isso a gente foi aquecendo né a mobilização. Mas a greve geral em si, que era a nossa reivindicação, não saía. O que a CUT deliberou foi a greve de categorias com pendências de data base, que era o nosso caso.

A gente assinou acordo com o Itamar que não foi cumprido, com o ministro do TST que não foi cumprido, com o Ministro de Minas e Energia que não foi cumprido. A categoria tava puta, e a gente tava meio desmoralizado, porque assinava acordo e não era cumprido. Então eu falei assim: “Oh, a gente vai fazer essa greve para resgatar nossa dignidade. E por dentro da greve vamos ver o que a gente reivindica a mais”. E foi assim que a gente decretou a greve, de Brasília.

Eu só fui uma vez para o Rio de Janeiro, que foi justamente quando nós matamos o Clotário [Francisco Cardoso], o negociador da Petrobrás. Ele era um fumante inveterado, tinha um bigode amarelo, de tanta nicotina. Ele me liga e fala: “Spis, vem pro Rio, vamos negociar e acabar com essa greve”. Eu falei: “O que você tem a oferecer?”. Ele [Clotário]: “Não, vem aqui, vamos conversar”. Falei: “Tá bom, eu vou”. Não divulgamos nada e nem a Petrobrás. Aí eu peguei o Flávio Pachalski, que era um pensador do PT, a Cristiane Lucchesi, jornalista da Folha de São Paulo, e outros quatro ou cinco diretores da FUP e fomos pro Rio né. 

Aí combinamos o seguinte: nós vamos para o sétimo andar, pra fazer negociação, depois a gente vai exigir a presença [Joel Mendes] Rennó, que era presidente da Petrobrás. Se ele não fosse, a gente combinou de negociar ali mesmo, foda-se. O importante era a Cristiane registrar que houve negociação, para quebrar o Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente do Brasil]. Porque o Fernando Henrique falava assim: “Volta a trabalhar que eu negocio”. E eu falava: “Abre negociação que a gente avalia o retorno”. Eu queria provar o seguinte: não teve retorno e teve negociação. 

O que aconteceu? A Cristiane Lucchesi botou na segunda página da Folha de São Paulo que teve a negociação, que ela esteve presente, com fotografia e tudo. O Raimundo de Brito, que era Ministro de Minas e Energia, liga para o Clotário, come o rabo dele tão forte que ele morre, porque ele era safenado. Aí não deu nada a reunião e foi mais um “remi remi”. 

Aí quando eu chego de volta em Brasília, eu ligo pra FUP, pra eles me buscarem, aí o David, que era um diretor da Bahia: “Spis, fica aí, que nós estamos avaliando se você vai no enterro do Clotário”. Falei: “Ele morreu?”. O David responde: “Morreu”. Eu lembro de ter dito: “Eu não vou no enterro desse filho da puta, eu vou pra FUP, manda me buscar aqui”. Então é isso, nós matamos o Clotário. A Cristiane Lucchesi me disse depois de um tempo, depois da greve, que na Folha de São Paulo ela era tida como a assassina do Clotário. Ela que tinha matado. Bom, acho que foi um assassinato conjunto.

Foram 32 dias de greve. E, pra mim, a dimensão é histórica. Ela mostrou pra outros setores, para a CUT, para outros sindicatos como realmente deve ser uma greve. Ou seja, bem organizada, com fundo de greve, e com a categoria conscientizada e pronta para o enfrentamento permanente. Porque a cacetada é pesada. Sem isso, a gente não teria condição de segurar a cacetada nas costas. Novamente, assim como 1983, houve demissão em massa e eu fui demitido junto, claro. 

Mesmo assim, me mantive na direção da FUP até entrar na direção da CUT. Entre 2000 e 2003, eu cheguei à coordenação da CUT em São Paulo. A CUT São Paulo é a mais forte do país e, nesse período, eu pude conhecer o estado inteiro. Do ponto de vista sindical, houve nesse período muitos enfrentamentos, muita luta. E, depois, eu voltei para a direção da CUT Nacional, na pasta de Comunicação, a pedido do [Luiz] Marinho, que se elegeu presidente da entidade em 2003.

Família

Eu e minha esposa perdemos um filho com um ano e um mês, em 1992. Foi aí que decidimos adotar duas crianças. Falei: “Vamos adotar duas crianças, porque se não eu vou ficar na CUT a vida inteira, não vou conseguir sair”. Então a gente começou a procurar crianças de 2 a 6 anos e não achava. Entrei no cadastro nacional, pelo fórum de Santana, em São Paulo, mas não achava nada. Chamavam a gente pra reunião, pra fazer curso, e nada. Você via na televisão que casais de fora vinham aqui e adotavam as crianças, e crianças negras eram mais fácil de adotar. Eu falava na reunião: “Gente, mas não é possível, eu quero duas crianças de 2 a 6 anos, só não quero que sejam homens, porque eu tenho três sobrinhos pequenos perto de casa. Eu quero um casal ou duas meninas”. E nada, nada. 

Aí a secretária do Vicentinho da CUT [atualmente deputado federal], a Mirtes, falou assim: “Spis, vai atrás, tem um monte de lugar que você pode ir. Você pode ir em orfanato, em creche, vai atrás. Vê se você consegue, você tá no cadastro, se você encontrar alguém que você queira, e tiver como você adotar, você fala que tá no cadastro. E olha, vai ter um almoço para arrecadar fundo lá no orfanato de São Bernardo, que eu tô sabendo”. Eu fui lá, fui lá nesse almoço e conheci uma moça que falou assim: “Você quer duas meninas? Lá em Pedregulho tem”. Pedregulho fica a 470 quilômetros de São Paulo, terra do Quércia, aquele filho da puta. 

Aí fui lá por seis finais de semana seguidos, pra me credenciar, pra poder adotar. E cada vez que eu ia, se você levasse alguma coisa, tipo chocolate, tinha que levar chocolate pro orfanato inteiro. Lá era uma casa de abrigo. Se você fosse levar, sei lá, fruta, tinha que levar fruta pra todo mundo. Não podia dizer que você queria adotar aquela e aquela. Só que aí, as assistentes sociais que estavam lá falaram pra mim: “Olha aquelas duas ali, uma de 5 e outra de 7 anos, que os pais foram viciados em cocaína e craque. Falei: “Tá bom, quero me credenciar”. 

Ai você vai, vai, vai, aí numa das vezes que eu tava lá chamaram as meninas e falaram assim: “Olha, eles tão querendo adotar vocês. Vocês aceitam?”. Elas falaram que aceitavam. Falei: “Ah, então daqui pra frente meu nome é papai e o dela é mamãe, tá? Tá bom?”. 

Pusemos as duas no carro, tive que comprar cadeirinha, porque a menorzinha precisava. Compramos a cadeirinha lá no comércio de Pedregulho. O abrigo ficava em São Joaquim da Barra, que a gente ia visitar todo domingo. Aí viemos pra São Paulo. E daí a gente começou a descobrir os problemas. Quando você adota uma criança, não te contam os problemas. Geralmente, você adota uma criança bebezinha e ela não sabe dizer a história. Você leva pra tua casa e cria. 

Essas duas crianças já tinham idade. Elas tinham noção do que era sexo, tinha noção de que o pai tinha violentado a maior, elas tinham essas conversas lá com a assistente social. Já vinham preparadas pra te enfrentar, como se você fosse querer cobrar alguma coisa: “Ah, eu vou entregar você lá pra assistente social”. Aí foi o seguinte: a maior começou a dar muito problema em casa. E a psicóloga que eu arrumei em São Paulo começou a dialogar com o psicólogo do abrigo. E numa das visitas o psicólogo do abrigo disse que a criança deveria ficar lá, sair da minha casa. 

Aí ficou aquele drama, volta com uma só ou não volta com nenhuma? Aí decidimos voltar com uma, com a nossa filha. A outra menina foi adotada por uma família lá de Pedregulho mesmo e eu virei seu padrinho. 

Em todas as férias escolares da minha filha, eu a levo pra ficar com a irmã um pouco. Elas saem um dia pelo menos pra curtir por lá. Minha filha tem atualmente 19 anos. E foi assim que eu construí a minha família. 

Memória petroleira

Ser petroleiro é ter uma missão, uma missão que você começa a conhecer quando se envolve com mobilização. Não é só missão de ir trabalhar, receber um dinheirinho e voltar pra casa, não é isso. Se você se envolve com a mobilização você entende o que é a Petrobrás, entende como ela é usada como política de pagamento de dívida externa e de solidificação de governos safados, que é a maior empresa brasileira, etc. O [John] Rockefeller dizia: “O melhor negócio do mundo é uma empresa de petróleo bem administrada; o segundo melhor negócio, uma empresa mal administrada”. Existe um grande poder através dessa área energética que a gente lida, é impressionante cara. Impressionante! 

E existe um orgulho de ser trabalhador da Petrobrás, por ser estatal. A gente não faz greve pra danificar a empresa, por exemplo, mas pra defender o patrimônio público. Então nós somos um trabalhador diferenciado, de alguma maneira.

Dito isso, eu acho que a memória só tem validade se deixar algo plantado pro futuro. A memória deve ser uma semente para o futuro. Eu, particularmente, quero ser lembrado como um trabalhador petroleiro com perfil sindical. E que participou de todas as mobilizações que teve pela frente. Aí cada um faz a avaliação se participei bem, se participei mal, vai de cada um. Mas eu tenho a consciência tranquila que eu fui muito firme e seguro na responsabilidade que a categoria me deu nas tarefas que desempenhei no sindicato, na FUP e na CUT.

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