Em entrevista exclusiva, Víctor Bahamonde descreve os sentimentos opostos que surgem logo após a vitória esmagadora das forças progressistas sobre a Constituição da ditadura militar; se por um lado o país respira esperança por um novo processo democrático, por outro pressente as reações que devem surgir por parte dos setores beneficiados historicamente por este sistema político
Por Guilherme Weimann e Marcelo Aguilar
“Amanheci com uma sensação de alegria e preocupação”, disse o militante chileno Víctor Bahamonde, integrante do Movimiento por la Defensa del Agua, la Tierra y la Protección del Medioambiente (MODATIMA), em entrevista concedida na segunda-feira (26), um dia depois da esmagadora vitória no plebiscito que aprovou o início do processo de construção de uma nova Constituição política no país.
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Mais de 80% das pessoas que participaram do plebiscito votaram no “aprovo”, demonstrando a enorme rejeição do povo chileno à atual Constituição, redigida em 1980 durante a ditadura militar (1973-1990) comandada por Augusto Pinochet. Víctor explica os motivos da sua sensação: “a alegria é pelo resultado, e a preocupação é por tudo o que vem daqui por diante, o que teremos que fazer – os movimentos sociais e políticos – para articularmos e garantirmos que os territórios tenham representação, e para que possamos discutir os temas estruturais do país e não somente as coisas que possam maquiar o que existe hoje no Chile, que é uma democracia restringida, autoritária e centralizadora”.
Leia a entrevista completa:
Qual você acredita que seja a principal mensagem que o povo chileno deixou no último domingo?
Víctor: A principal mensagem é de cansaço. O resultado, muito positivo, é esmagador em nível nacional. Se pudéssemos colocar em cores, azul como aprovação e vermelho como reprovação, apenas cinco comunas [regiões territoriais semelhantes aos bairros, com certa independência política] ficariam vermelhas, e três delas estão localizadas nas áreas altas de Santiago, que são as zonas mais ricas do Chile. Ali se concentram as grandes empresas, as transnacionais e seus principais gerentes, assim como a alta cúpula das Forças Armadas, os que votaram a favor de manter o legado de Pinochet. O restante, tudo azul.
Existe uma enorme distância entre o povo e o poder, e ao mesmo tempo vivemos uma das desigualdades mais extremas da América Latina.
Por isso, na prática, a mensagem é de cansaço de 30 anos do modelo neoliberal e de uma democracia muito elitista, que privilegia fundamentalmente os que se acomodam no poder com os privilégios e prejudica as grandes maiorias. A sensação que existe hoje na rua reprova a expressão mas abusiva desse modelo, e de uma democracia muito autoritária, demasiadamente centralizada em Santiago e no presidente da República, que tem quase poder absoluto frente ao restante dos poderes.
Existe uma enorme distância entre o povo e o poder, e ao mesmo tempo vivemos uma das desigualdades mais extremas da América Latina. Em Chile, podem conviver na mesma cidade pessoas que têm rendas dos países mais ricos do mundo, e outras com rendas dos países mais pobres. Por isso, todo esse contexto gera muito cansaço, mas também esperança, porque no fundo as pessoas acreditaram em uma proposta de transformação, que neste caso é a Constituição.
No Brasil, existe um sentimento de cansaço há muitos anos, que ficou ainda mais evidente nos protestos de 2013. Apesar disso, o resultado que vemos hoje é um governo de ultradireita. Como vocês conseguiram canalizar esse cansaço para algo como a Convenção Constitucional?
É uma boa pergunta, mas a resposta não é simples. No Chile, uns poucos privilegiados concentram os meios de produção, de comunicação, as grandes empresas, as alianças com as multinacionais, e a vinculação com as Forças Armadas, que defendem seus interesses. Nestas três décadas, o modelo [neoliberal] gerou situações que as pessoas não aguentam mais. Este modelo se sustenta na dívida. Hoje em dia, 80% das famílias em Chile estão endividadas, gastam mais do que ganham, e isto as empurra a viver em uma grande precariedade. Temos uma das educações mais caras do mundo, e isso não resulta em uma maior qualidade.
Desde que nascemos até quando morremos temos que pagar por tudo. Saúde, escola, comida, transporte, tudo se paga.
Desde que nascemos até quando morremos temos que pagar por tudo. Saúde, escola, comida, transporte, tudo se paga. Não existe nenhuma possibilidade de que por ser chileno você tenha algum tipo de bem comum. Tem que pagar por estar aqui, e isso o presidente [Sebastián] Piñera disse várias vezes, ou seja, que ‘nada é grátis’. Nesse contexto tão difícil, as pessoas foram cansando da classe política de forma transversal. Este é um triunfo fundamentalmente das pessoas organizadas e desorganizadas nas ruas, contra um modelo que tem sua pior cara no endividamento e na precarização da vida e do trabalho.
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Temos que pagar por tudo, e no fundo uns poucos se beneficiam. Um exemplo: o mar do Chile, com quatro mil quilômetros lineares, foi repartido entre sete famílias. Então, é demasiado grosseiro o modelo neoliberal no Chile, e chegou o momento em que as pessoas disseram ‘basta’. A isto se somam a experiência e a elaboração crítica dos movimentos sociais, que têm lutado permanentemente pela recuperação dos bens comuns e dos direitos sociais. O limite do possível foi movido um pouco, a burguesia nacional está tendo que ir cedendo algumas coisas, as pessoas se cansaram disto e estão melhor preparadas que antes para sustentar a luta.
Você mencionou o legado pinochetista, e que as pessoas cansaram dele. Quais são as heranças da ditadura que a Constituição reprovada no domingo por ampla maioria consolida até hoje?
Um dos temas mais sentidos pelas pessoas são as aposentadorias. Chile tem se convertido paulatinamente em uma sociedade mais velha, com mais aposentados, que enxergam que as promessas deste modelo implementado na década de 80 não se cumpriram. Quando se criaram as AFP’s (Administradoras de Fundos de Pensões), que administram as aposentadorias de forma privada, prometeram que para o ano 2000 as pessoas iriam ganhar 80% do salário ao aposentar-se, e 100% do salário para o ano 2020. Mas, na prática, há aposentados que ganham 10 ou 20 vezes menos do que ganhavam [quando trabalhadores ativos], porque se criou um modelo que mantém muita riqueza concentrada em poucos e que gera pobreza. As pessoas deixam de trabalhar para serem pobres, não podem pagar o aluguel, a saúde, a comida. Com isso, precisam recorrer a dívidas para comer, para o transporte, e isto gera um círculo de marginalidade e precariedade. Esta é uma das heranças mais ativas de Pinochet. A saúde e a educação também são reflexos, 30 anos depois, deste modelo que deve ser superado.
E essas demandas não encontram espaço dentro da atual Constituição?
Sempre quando surge algum problema ou discussão estrutural – de trabalho, de distribuição da terra ou da água -, o discurso é que qualquer mudança seria ‘inconstitucional’. Isso faz com que, por exemplo, apesar do país ter um modelo absolutamente privado da água – no qual não há água para consumo em várias comunidades, mas há para regar monoculturas -, não se pode transformá-lo porque a Constituição atual não permite.
Quais são os principais desafios do povo organizado já neste primeiro momento no processo constituinte?
De imediato, devemos inscrever delegados e delegadas constituintes em janeiro de 2021 para que sejam eleitos em abril. Acredito que o principal desafio seja que esse 80% que se expressou nas urnas a favor da nova Constituição busque uma articulação política. Desde a convulsão social [de outubro de 2019], foram sendo levantadas muitas estruturas populares, assembleias e territórios que estão debatendo por baixo fortemente o país que querem, mas é urgente construir pontes para poder tomar decisões políticas importantes, chegar a construir uma lista única de delegados e delegadas constituintes, e eleger pelo menos dois terços da assembleia em abril do próximo ano, para poder trabalhar com certa comodidade.
O desafio mais importante é a unidade para poder colocar os temas estruturais em cima da mesa desta Convenção e não somente questões de forma.
A assembleia se denomina Convenção Constitucional, formada 50% por homens e 50% por mulheres, eleitos por voto universal. Mas tem uma armadilha que a direita criou, que para chegar a acordos será necessário ter dois terços da assembleia. Ou seja, se a direita conseguir ter um delegado para além de um terço, poderá vetar todos os temas que o restante da assembleia, eleita pelo povo, quiser discutir e aprovar. Vai ser um barril de pólvora, um espaço de disputa política forte onde, se não houver unidade – as organizações sociais, os partidos políticos de oposição, e o campo hoje em dia desorganizado mas que está se articulando lentamente de baixo -, teremos pelo menos um terço da direita na assembleia, que já está chamando à unidade para levar seus próprios constitucionalistas, e tem dito algumas vezes que ‘é necessário se organizar bem para ter um terço e que nada mude’. Diante dessa ameaça, o desafio mais importante é a unidade para poder colocar os temas estruturais em cima da mesa desta Convenção e não somente questões de forma.
Todas essas disputas ocorrerão dentro da Convenção? Será um caldeirão isso…
Sim, assim será. Por isso o desafio da unidade. Porque, no fundo, os que entrarem na Constituinte terão que ser soldados romanos, já que a direita não vão deixar passar nada. O que eles têm defendido fundamentalmente é a propriedade, ou seja, que tudo o que já está entregue não se toque. Estamos falando da terra, da água, dos minerais, do mar, a costa. A direita quer que se mantenha o modelo econômico extrativista, agroexportador, mineral e de silvicultura, que tem também um forte componente do mercado financeiro. A Constituinte vai ter essa forte disputa econômica, quando se tratar dos bens comuns, e reconhecer direitos sociais.
Neste caldeirão, em qual nível poderia chegar a reação das oligarquias se o processo adquire um caráter profundamente transformador?
Um dos criadores da Constituição de Pinochet, Jaime Guzmán, que foi também um político ultraconservador e ultradireitista, um demônio político para o país, que concebeu não somente a Constituição como também o modelo econômico e a aliança com a ditadura, disse: ‘teremos que fazer uma Constituição política para que em algum momento os que chegarem a governar, governem como se nós estivéssemos no poder’. Ou seja, para privilegiar as classes ricas. Quando se começa a debater a recuperação dos bens comuns, a terra, a água, os minerais, e os direitos sociais como a educação, a saúde e as aposentadorias, surgirão tensões mas fortes dentro da Constituinte. Porque existem interesses muito grandes em jogo. Quando começar a tocar nisto, evidentemente as burguesias nacional e internacional começarão a ter outras atitudes, que provavelmente não serão muito democráticas. Se não há acordos, se decidirão estas questões estruturais no próximo parlamento. Por isso, as próximas eleições serão muito importantes porque vão legislar sobre coisas que não entraram na Constituição. Esta também pode ser uma aposta da direita, ter minoria na Constituinte, mas obter ampla maioria no próximo parlamento e tirar tudo o que avançou.
E quem são os principais atores que poderiam se colocar contra este processo democrático?
Existem duas fontes de interesses que são profundamente nocivas e que até agora não se expressaram, ainda que sabemos que de alguma forma o farão. As Forças Armadas, extremamente privilegiadas por esta Constituição, e, por outro lado, os interesses do imperialismo no Chile. Sabemos que os Estados Unidos sempre têm os olhos colocados aqui, e opera até hoje por meio das Forças Armadas, da imprensa, e por meio do financiamento das campanhas políticas. Mas como se expressarão na nova Constituição não sabemos ainda. Pode significar repressão, assédio contra o processo de luta, perseguição. Ainda que suas operações sempre são nas sombras, sabemos que aparecerão para defender a burguesia, e com ela esse ‘paraíso neoliberal’ que é o Chile, onde fazem e desfazem. Isto deve mudar, e aí as tensões políticas vão ocorrer com muito mais força. Daqui por diante, Chile se converte em um país de muita tensão política e muitas coisas em jogo.
O cineasta chileno Patricio Guzmán disse no seu filme Nostalgia da Luz, que “a memória tem força de gravidade, sempre nos atrai. Os que têm memória são capazes de viver no frágil tempo presente, os que não a tem não vivem em nenhuma parte”. O processo que estão vivendo hoje é um encontro com a memória chilena?
Certamente é, e analiso esse encontro por meio de duas leituras. Uma tem a ver com uma geração jovem que tenta fazer esforços de memória, mas que tem poucos espaços de articulação com a geração mais velha onde possam compartilhar experiências. São estudantes secundaristas e universitários, que estão reinventando constantemente a política e sua forma de fazer, mas muitas vezes as pessoas atribuem a eles um pensamento como se tudo tivesse começado quando nasceram, ou como se simplesmente eles não quisessem compartilhar essa memória história.
O que temos visto na revolta popular é que as expressões de memória política aparecem todos os dias.
Entretanto, como memória coletiva estão as expressões prévias à convulsão social que começou no dia 18 de outubro de 2019 e continua até agora, como o ressurgimento mapuche em 1998, a expressão do movimento estudantil nos anos 2001, 2006 e 2011, a luta territorial que tem desenvolvido algumas comunidades pela defesa dos rios e contra projetos minero-energéticos, ou contra as monoculturas, tanto de silvicultura como agrícola.
O que temos visto na revolta popular é que as expressões de memória política aparecem todos os dias. Por exemplo, ressurgiram dois ou três canções históricas de Chile que hoje em dia se cantam em todas as manifestações, como El Pueblo Unido, que nos remete aos anos 70; El Baile de los que sobran, de Los Prisioneros, uma música emblemática dos anos 80 e do plebiscito do ‘NÃO’ para que se encerrasse a ditadura; e El derecho de vivir en paz, de Víctor Jara, que mostra um momento político da história do Chile muito ligado à memória de Salvador Allende.
Outros ícones têm surgido, como a bandeira do Chile pintada de preto, ou o Matapacos, um cachorro de rua que morreu em 2017, mas que já era famoso desde 2011 por acompanhar as lutas dos estudantes naquele ano com seu lenço vermelho e enfrentar os pacos [nome depreciativo dado aos policiais no Chile]. Hoje em dia se converteu em um grande símbolo, existem cães matapacos por todos os lados, pintados nas esquinas, estampando bandeiras. A expressão dos olhos também, a partir da enorme quantidade de mutilações – mais de 400 pessoas perderam total ou parcialmente a vista nas mãos da polícia -, algo sem precedentes. Estas violações dos direitos humanos fazem com que esse exercício de memória aconteça muito na prática. Por isso as duas leituras. Por um lado, uma geração muito jovem que busca sempre começar de novo e, por outro lado, a memória política como uma expressão popular de acumulação de forças na história. Isso está ocorrendo e está convivendo na rua. Estamos aprendendo a fazer da memória um exercício político de futuro.