Economista Marcio Pochmann faz alerta sobre modelo utilizado pelo governo federal para concessão de benefícios que pode resultar em vantagem
A 20 dias das eleições municipais, algumas candidaturas e propostas começam a ficar melhor definidas e um dos aspectos que salta aos olhos é a queda do trabalho como prioridade nas campanhas.
O crescimento das chamadas pautas morais pode estar atrelado ao quadro de candidatos e influenciá-lo. De acordo com dados divulgados pelo Observatório das Eleições, o número de postulantes à prefeitura com títulos militares cresceu 300% em relação às eleições municipais de 2016. Entre aqueles que se definem como líderes religiosos, a elevação foi de 40%.
Em entrevista ao Sindicato Unificado dos Petroleiros de São Paulo (Sindipetro-SP), o economista e professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Marcio Pochmann fala sobre como o emprego perdeu a centralidade nos debates eleitorais.
Na conversa, ele avalia ainda como o programa Renda Básica Emergencial pode influenciar o pleito e alerta que o modelo de cadastro utilizado pelo governo federal pode ser usado para ter acesso privilegiado aos eleitores.
Qual o impacto que a Renda Básica Emergencial, que hoje atinge 71 milhões de pessoas, deve ter nas eleições?
Marcio Pochmann – Sem um programa dessa natureza, certamente, o quadro econômico e social do país estaria muito pior.
Temos um desemprego que cresceu relativamente pouco, três milhões de pessoas, mas isso também tem relação com o método de pesquisa utilizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). O levantamento do IBGE, que utiliza a contabilidade estimulada pela OIT (Organização Internacional do Trabalho), privilegia o olhar sobre a ocupação. Quem está desempregado e não procurou trabalho, não é desempregado, é inativo. Se está desempregado, mas fez algum bico, para o IBGE, está ocupado.
Esse programa tem impacto para a pessoa entender que o governo fez alguma coisa e isso tem resultado em certa aceitação. Agora, se esse programa converte em voto é algo a ser considerado, não apenas no ponto de vista da iniciativa, mas também do cadastro gerado por ela.
O cadastro das pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família, por exemplo, é feito no município e compartilhado com o governo federal. Já no programa de Renda Básica Emergencial todos foram feitos na Caixa Econômica Federal.
O governo Bolsonaro já havia tentado administrar cadastros assim anteriormente, seja na atualização da CNH (Carteira Nacional de Habilitação), seja por meio de uma medida provisória para buscar obter números telefônicos para fazer pesquisa pelo IBGE. Mas não deu certo.
Agora tem em mãos os dados de 100 milhões de pessoas e isso pode gerar um benefício maior do que o programa em si para as eleições.
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A coleta de dados pode ter mais impacto do que o aspecto social?
Marcio Pochmann – A campanha para as últimas eleições presidenciais teve um diferencial que foi a definição do voto muito influenciada pelo Whatsapp. E isso era fora do governo, com fake news e outros fatores. Agora há um gabinete do ódio que se instituiu numa espécie de novo Ministério de Comunicações.
Temos uma novidade, um cadastro imenso nacional, com um número importante de pessoas em cada cidade que recebem o benefício e o atual governo dispõe dessas informações, que pode utilizar para favorecer candidatos aliados.
O Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, que trata da redução da jornada, atingiu, majoritariamente, a suspensão dos contratos. Mecanismos como esse podem estimular a flexibilização ao invés de encontrar saídas? Havia outros caminhos?
Marcio Pochmann – Em 1990, durante o governo do Fernando Henrique (PSDB), foram introduzidas novidades contratuais, com jornada parcial e até mesmo uma possibilidade em que empresa não rompia contrato, pagava parte do salário e o governo outra parte, desde que houvesse qualificação.
Essa medida agora não está vinculada à qualificação nenhuma, apenas suspensão temporária, mas sem abandono do contrato de trabalho.
Tenho a impressão de que essa medida impediu a demissão imediata, mas não sabemos se pode apenas postergar a dispensa. Tudo dependerá de haver ou não reativação da economia.
Claro que há alternativas a isso, desde as mais drásticas, como houve na Argentina, com o impedimento à demissão, até outras possiblidades em relação a preparar a pessoa, nesse período em que fica sem atividade, para algo que lhe permitiria não apenas qualificação, mas também a montagem de pequenos negócios ou algo com essa característica.
“Temos um cadastro imenso nacional, com um número importante de pessoas em cada cidade que recebem o benefício e o atual governo dispõe dessas informações, que pode utilizar para favorecer candidatos aliados.”
Essa política deixa a mensagem de que quem realmente precisa e merece ser salvo é o empregador?
Marcio Pochmann – Essa foi uma das poucas vezes em que as empresas tiveram tamanha autonomia, são elas que informam quem ficará em casa, quem terá redução de jornada. E o recurso público vai diretamente para a conta da pessoa, não passe pela empresa.
Mas é algo que está relacionado à financeirização, tudo vai virando algo financeiro, que passa por banco.
Um programa social pressuponha identificação público alvo, um trabalho de assistentes sociais, com a família, havia articulação com o Estado, integração com pessoas. Hoje você tem um programa que quem executa é o Ministério da Fazenda e não um ministério da área social. É a economia que define recursos, que passa para o banco, que envia para as pessoas. Não tem a interferência do Estado, que constituía sociabilidade e que está ligado à dominância financeira.
Uma das críticas que se faz às presidências do PT é a inabilidade em aliar os programas sociais à politização dos beneficiários. É possível aliar essa iniciativa com um debate que discuta temas como a concentração de renda no país?
Marcio Pochmann – Esse é outro aspecto que tem relação com financeirização. Você é um cidadão que recebe recurso e ponto final. Não está relacionado ao entendimento desse processo. Como foi possível criar um programa como o próprio Bolsa Família, que não é apenas renda, mas articulação com outras iniciativas como frequência escolar, cuidado com a saúde, posteriormente, com habitação por meio do Minha Casa Minha Vida.
O problema, no meu modo de ver, é colocar um tecnocrata articulando um programa para pobres. Há um determinado número de pessoas sem casa, logo, vamos criar condições para que possam ter casa. Não é um processo de política em que o pobre se vê envolvido. Não é uma política com, mas para os pobres.
Um dos programas do início do governo Lula era o Fome Zero. Quem fazia a identificação dos pobres eram os próprios pobres e isso exigiria, nessa auto organização, uma conscientização sobre a situação do país e porque são pobres. Não porque são incompetentes, despreparados ou porque a vida é assim. Mas porque há um processo econômico, social e político que faz com que tenham uma participação muito pequena no trabalho e no acesso à renda.
Quando foi instaurado o Fome Zero, isso gerou uma contestação silenciosa dos prefeitos. Os poderes locais reagiram à possibilidade dessa massa ser empoderada, politizada e transformada em cidadã.
O programa Fome Zero teve um embate no início que o paralisou, porque o cadastro não seria mais feito na prefeitura, os pobres mesmos se organizaram e essa tensão, em 2003, por conta do pragmatismo, de que o tempo estava passando e o resultado deveria acontecer, fez com que o governo abandonasse o Fome Zero e instaurasse o Bolsa Família.
É um programa excelente, que permitiu, por meio de bancos, o acesso dos pobres a recursos, mas o controle do cadastro continuou sendo feito pelos governos locais. Isso só foi possível sem politização.
Talvez se tivesse criado um ministério, com presenças municipais, e que atuasse diretamente com essa massa empobrecida, o resultado pudesse ter sido outro. Mas falamos de um país com dimensões continentais, um governo que estava iniciando, com muitas críticas. Não é simples. Essa crítica é válida, mas precisa partir da realidade, de quais eram as condições para que algo diferente fosse feito.
Com a ascensão de representantes de grupos religiosos e militares, consequentemente, das ditas pautas morais, o trabalho parece ter perdido espaço nos debates. Como um tema importante, que afeta diretamente a todos, se torna secundário?
Marcio Pochmann – Isso ocorre porque o trabalho vai perdendo espaço para o empreendedorismo, da perspectiva do individualismo. A dimensão coletiva foi sendo muito esvaziada. Essa circunstância de ataque a sindicatos, de permitir que trabalhadores recebam auxílio na condição de interrupção do contrato de trabalho, de suspensão da jornada foi feita de forma individual, colocou o sindicato de fora.
A própria reforma trabalhista esvaziou e enfraqueceu a possibilidade do trabalhador de recorrer à justiça do trabalho. Há um ataque à perspectiva coletiva, de pensar o trabalhador como um sujeito de direitos, sujeitos históricos e políticos. E emerge a perspectiva individualista, neoliberal, da ideia de que cada um por si resolverá a sua situação.
O enfraquecimento dos sindicatos, partidos e instituições coletivas são resultado direto disso.
Em âmbito municipal, quais saídas para a crise que as próximas eleições podem ou poderiam apresentar?
Marcio Pochmann – É difícil imaginar a saída da crise a partir do município, se trata de um fenômeno de natureza nacional. Nossas soluções são nacionais, exigem soluções do ponto de vista federal e estadual.
Mas isso não significativa que não tem espaço para políticas diferenciadas nos municípios. Uma dessas políticas é a moeda social, o crédito social, o banco social e comunitário. Nós temos um sistema bancário que não chega aos pequenos negócios, à economia popular. Alternativas a isso são possíveis e temos experiências assim no Brasil que garantem o recebimento de benefícios em outra moeda que não o real. Que garantem que as pessoas consumam na própria localidade e mobilizem a economia popular.
Há oportunidades a serem testadas no local, tivemos várias experiências inovadoras na década de 1980 em vários municípios brasileiros, como o orçamento participativo, que se tornaram experiências nacionais relevantes.