Apesar do discurso uníssono da mídia hegemônica, não existe diferenciação entre o autoritarismo bolsonarista e o neoliberalismo do capital financeiro
Por Carlos Salazar* e Guilherme Weimann**
Bastou um pequeno gesto de “intervenção” (e aqui se inicia o jogo linguístico) na Petrobrás para que jornalistas de grandes veículos de comunicação abandonassem a conivência – até então funcional aos interesses de quem os financia – com o governo. Nesse teatro pitoresco, a mudança de nomes resgatou o medo do mercado financeiro de que a estatal voltasse a cumprir seu papel social e, com isso, deixasse de engordar o bolso dos seus acionistas.
Mas alguns jornalistas, como Merval Pereira e Malu Gaspar, não coincidentemente funcionários do jornal O Globo, foram além. Sugeriram que a “esquerda” está compactuando com a troca de um neoliberal, o economista Roberto Castello Branco (colocado carinhosamente no grupo dos “Chicago oldies” pelo seu amigo Paulo Guedes), por um militar, o general Joaquim Silva e Luna. Seria o surgimento do “bolsopetismo”.
O argumento é tão fraco, entretanto, que ele não poderia ser aplicado com quem os criou. Caso contrário, poderíamos ter cunhado a expressão “globonaro” para definir a aproximação e pactuação desse veículo, que sempre foi porta-voz do mercado financeiro, com as políticas neoliberais do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
O neoliberalismo, na sua gênese, é e sempre será autoritário.
No fundo, o que esse jogo linguístico tem como objetivo é criar uma falsa encruzilhada, na qual apenas existiriam os caminhos do autoritarismo bolsonarista e da democracia miserável do mercado, como se eles não seguissem na mesma direção quando é conveniente aos bolsos do mercado financeiro. O neoliberalismo, na sua gênese, é e sempre será autoritário.
Diante desse suposto racha entre ditadores e agentes do capital financeiro, a mídia corporativa sempre se colocará ao lado dos mercados abutres, que se constituem a partir dos interesses em absorver o lucro extraordinário que provém da economia do petróleo.
Um estudo da Universidade de São Paulo (USP), assinado pelo professor Ildo Sauer, mostra que dos US$ 8 trilhões de excedente econômico produzido pela economia mundial, o petróleo é responsável entre US$ 1,5 e US$ 3 trilhões. A diferença entre o preço de retirada do óleo e a cotação internacional do barril representa a principal margem.
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Atualmente, a Petrobrás retira o óleo cru do pré-sal a custos nacionais pelo valor aproximado de US$ 8 por barril. Já a cotação internacional, hoje, precifica o barril em US$ 67, o que representa uma margem de receita incomparável à larga maioria das atividades econômicas pelo mundo.
Porém, ao nos debruçarmos sobre quais economias triunfaram na divisão internacional do trabalho, nos surpreendemos com a importância do refino. Um breve olhar sobre as sociedades que chegaram mais fortes ao século XXI pode nos dar um panorama sobre sua relação com o mercado internacional de petróleo e a cidadania de seu povo, o desenvolvimento tecnológico e social e o acesso aos serviços básicos como saúde e educação.
Países exportadores de petróleo ao longo do século XX se caracterizam por populações empobrecidas em nações com grande concentração de poder político e econômico, como califados, ditaduras ou frágeis democracias. São países como a Líbia, Síria, Arábia Saudita, Venezuela, Kuwait, Emirados Árabes e Nigéria.
Quem possui um parque de refino desenvolvido tende a apresentar um sistema político mais democrático, com direitos civis e cidadania garantidos.
Por outro lado, quem possui um parque de refino desenvolvido tende a apresentar um sistema político mais democrático, com direitos civis e cidadania. O grande lucro financeiro na indústria do petróleo se concentra na extração do óleo. No entanto, as sociedades que se desenvolveram social e tecnologicamente são os grandes refinadores e, não raro, importadores do óleo: Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha e Noruega.
A vitória das sociedades na disputa geopolítica do petróleo está na capacidade de obter petróleo a preços favoráveis no mercado internacional e abastecer o seu mercado com os derivados refinados no país.
A situação brasileira se configura como uma “jabuticaba”, para utilizarmos da linguagem popular. Desde 2005, a Petrobrás tornou o Brasil autossuficiente em petróleo, o que significa dizer que a estatal é capaz de obter petróleo que o mercado doméstico demanda, ao preço de seu próprio custo, contando com plena capacidade de refino. Ou seja, enquanto as nações hegemônicas necessitam produzir golpes, guerras e grandes acordos geopolíticos para obter petróleo a preços favoráveis, o Brasil possui petróleo e capacidade de exploração, refino, transporte e distribuição.
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Aqui entramos no debate sobre a privatização. Os atuais ocupantes do Executivo, autointitulados liberais, assim como a mídia hegemônica e boa parte da elite nacional, convenceram-se de que a privatização da Petrobrás, de seus poços de petróleo e de suas refinarias, é o melhor caminho para o nosso país.
A Refinaria Landulpho Alves (Rlam), localizada no Pólo Industrial de Camaçari, na Bahia, está neste momento sendo negociada com o fundo soberano Mubadala (dos Emirados Árabes Unidos). Para que o negócio seja rentável aos compradores, é fundamental que estejamos pagando nos derivados (GLP, gasolina e óleo diesel) os valores praticados internacionalmente, por meio do chamado Preço de Paridade de Importação (PPI).
Com base na variação internacional do barril de petróleo, nas oscilações do dólar e nos custos logísticos de importação, o PPI foi responsável, apenas no acumulado deste ano, pelo aumento de 34,4% no valor da gasolina e 27,7% do diesel. Ou seja, produzimos em reais, mas pagamos os combustíveis em dólar.
Esta é a solução dos economistas neoliberais Paulo Guedes e Roberto Castello Branco – corroborada pelos seus difusores, como Míriam Leitão e os já citados Merval Pereira e Malu Gaspar – criando condições favoráveis no mercado interno para as privatizações. Ou seja, gasolina a mais de R$ 5 por litro como condição para concretizar a transferência de parte do nosso patrimônio para um fundo dos Emirados Árabes. Além disso, essa política de preços abre espaço para outros abutres, que são os importadores de combustíveis.
Quem tem a mínima ilusão de que um fundo estrangeiro diminuirá o preço dos combustíveis?
Em que medida um fundo estatal estrangeiro poderá melhorar nosso mercado de refino? Quem tem a mínima ilusão de que um fundo estrangeiro diminuirá o preço dos combustíveis? Propositalmente, essa parte sobre as privatizações foi completamente ocultada dos artigos e reportagens do Grupo Globo durante a cobertura sobre a troca no comando da Petrobrás.
Ainda que aceitemos os argumentos eminentemente liberais das vantagens do mercado competitivo, estamos trocando um monopólio sobre um importante mercado interno, atendido pela Rlam, por um monopólio de um fundo soberano dos Emirados Árabes. Não haverá nenhuma das leis de livre mercado atuando nesse negócio. Ou seja, os preços dos combustíveis passarão a ser ditados por quem comprar a refinaria.
O que devemos nos perguntar é: qual a vantagem que o povo brasileiro leva nesse processo? Como é que ficamos convencidos de que nos desfazer de um patrimônio nacional, de nossa infraestrutura produtiva, nos traria alguma vantagem?
Bolsonaro parece estar entre a cruz e a caldeirinha. Por um lado, prometeu aos líderes do mercado financeiro as privatizações. Por outro, enfrenta os problemas de impopularidade pelos custos dos derivados. Sua estabilidade o levou a chutar da presidência da Petrobrás o neoliberal Castello Branco, indicando para o seu posto mais um militar. Eles conseguirão manter a popularidade e realizar as vendas previstas?
Nem essa ditadura incompetente que o Exército e Bolsonaro tentam emplacar, nem essa democracia eleitoral miserável dos falsos liberais e da mídia.
Ao longo do governo Bolsonaro, alguns analistas têm repetido: “ou teremos Petrobrás ou teremos democracia”. Os fatos vêm demonstrando que há coelho nesse mato. Mas podemos e já começamos a esquentar os motores para nos levantar contra isso. Nem essa ditadura incompetente que o Exército e Bolsonaro tentam emplacar, nem essa democracia eleitoral miserável dos falsos liberais e da mídia.
O Brasil, como povo soberano e estruturas políticas democráticas, depende de nós. Nosso território ainda possui as ferramentas, os objetos técnicos e a infraestrutura para retomarmos o rumo, e rompermos com o novo colonialismo de mercado.