Ex-presidente da estatal ainda destaca que há uma confusão deliberada da imprensa entre gás natural e gás de cozinha na cobertura do marco regulatório que aguarda sanção presidencial
Por Guilherme Weimann
Na última quarta-feira (17), a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) nº 4.476 – conhecido como “Nova Lei do Gás” –, que estabelece um novo marco regulatório para o setor de gás natural no país. Os deputados federais rejeitaram as emendas incluídas pelo Senado e aprovaram o texto original, que agora aguarda pela sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
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Com a relatoria do deputado Laércio Oliveira (PP-SE), o PL foi aprovado sob a justificativa de aumentar a concorrência de empresas no setor de gás natural, por meio da flexibilização na forma de contratação – de concessão, mais rígida, para autorização – e abertura da logística de infraestrutura.
Defensores do projeto, como a Associação Brasileira dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace), afirmam que o projeto possui potencial de alavancar R$ 60 bilhões por ano. Além disso, entusiastas do novo marco regulatório – como o ministro da Economia, Paulo Guedes – defendem que o preço da matéria-prima pode cair pela metade ao longo dos próximos anos.
É impressionante o número de editoriais e a quantidade de matérias que destacam elementos que são apenas desejos
Esses prognósticos, entretanto, são apontados como “desejos” pelo ex-presidente da Petrobrás [2005-2012], o economista José Sérgio Gabrielli. “Se olharmos os jornais nos últimos dias, é impressionante o número de editoriais e a quantidade de matérias que destacam elementos que são apenas desejos, porque não existem fatos que concretizem esses desejos”, explicou Gabrielli, durante participação no webinário do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).
Autor de uma análise recém-publicada sobre o tema, Gabrielli repreendeu as diversas benesses propagadas em relação ao novo marco regulatório. “Eles afirmam que a lei do gás vai trazer investimentos, abaixar os preços, aumentar a competição, incrementar o número dos gasodutos, que vai fazer uma revolução no setor de gás do Brasil, tudo isso sem nenhum fundamento”, opinou.
É uma lei para, essencialmente, tirar a Petrobrás do papel central de organização do setor
A falácia mais criticada pelo economista, que também é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é a que mescla o gás de cozinha e o gás natural como uma mesma matéria-prima. “Várias matérias confundem deliberadamente o gás de cozinha ao gás natural, como se fossem a mesma coisa. Portanto, a lógica em defesa da liberação e retirada da Petrobrás do setor é como se isso levasse à redução do gás de cozinha, o que nada indica que acontecerá”, advertiu.
O gás natural é o produto que chega encanado nas casas e indústrias. Constituído principalmente por metano, é produzido nas Unidades de Processamento de Gás Natural (UPGNs), de propriedade da Petrobrás. Nelas, também é feito o gás de cozinha (gás liquefeito de petróleo), mas em menor quantidade. A maior parte da matéria-prima vendida em botijões é processada nas refinarias, atualmente também controladas pela Petrobrás.
Retirada da Petrobrás
Para o ex-presidente da Petrobrás, a “Nova Lei do Gás” tem como objetivo diminuir a presença da estatal do setor de gás. “A lei não visa estimular a produção, a expansão dos gasodutos ou viabilizar uma comercialização com custos mais baixos. É uma lei para, essencialmente, tirar a Petrobrás do papel central de organização do setor”, ponderou.
Na prática, para Gabrielli, a lei é a consolidação de um movimento de venda das participações da petroleira em toda a cadeia logística do gás. “Nós estamos vivendo, desde 2016, um processo de suicídio assumido, aceito, pela Petrobrás. Ela vendeu a NTS [Nova Transportadora Sudeste], diminuiu sua participação no Gasbol [Gasoduto Brasil-Bolívia], está reduzindo o papel da Transpetro no setor do gás, vendeu a TAG [Transportadora Associada de Gás], saiu da Gaspetro e de 17 empresas estaduais. A Petrobrás saiu do gás natural, forçada pelo Cade e por uma mudança na política nacional para o mercado de gás natural”, detalhou.
Há uma mistificação do mercado de que reduzir o papel de uma grande empresa vai significar aumento dos investimentos, o que não necessariamente ocorre
A saída da Petrobrás do setor, entretanto, não ocasionará necessariamente a atração de investimentos, como destacou o ex-presidente da estatal. “Há uma outra concepção, também embutida nos defensores da lei, de que a concentração de atores e de controladores impede os investimentos, o que não é verdade, pelo contrário. Muitos dos investimentos exigem concentração, para ter condições de investir em um gasoduto que vai custar alguns bilhões de dólares e ainda vai ficar alguns anos com capacidade ociosa. Isso não é feito por pequenas empresas, não é como comprar na ‘xepa’ pelo preço que for mais barato. Mas há uma mistificação do mercado de que reduzir o papel de uma grande empresa vai significar aumento dos investimentos, o que não necessariamente ocorre”, esclareceu.
Lei não altera produção
Atualmente, segundo dados da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), a Petrobrás responde por 77% da produção nacional da matéria-prima e por 100% do que é importado. E isso tende a aumentar nos próximos anos, com a aceleração da exploração do pré-sal.
É falsa a ideia de que pela lei vai haver um aumento de produtores, com a entrada de outras empresas
“Dadas as condições atuais, a produção da Petrobrás é seis vezes e meia maior do que a segunda maior produtora de gás no Brasil, que é a Shell, e 20 vezes maior que a terceira. Portanto, o tamanho da Petrobrás em relação aos outros produtores de gás natural é enorme. Olhando para o futuro imediato, para onde vai a produção da Petrobrás nos próximos anos? Ela vai aumentar a produção do pré-sal, que possui um petróleo com uma alta pressão gás/óleo, o que também elevará a produção de gás natural. Na lei, não há nada que altere essa situação. Portanto, é falsa a ideia de que pela lei vai haver um aumento de produtores, com a entrada de outras empresas”, alertou Gabrielli.
Com isso, caso não haja investimentos do mercado na infraestrutura dos gasodutos, poderá surgir um problema estrutural devido ao aumento da produção de gás natural do pré-sal, que é associada ao petróleo. Atualmente, uma parte do gás é reinjetado nos campos, o que melhora a produtividade, mas existe uma quantidade crescente que precisa ser escoada.
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Além disso, o economista chama atenção para a falsa ideia de que o novo marco regulatório, caso seja aprovado pelo governo, ocasionará um crescimento da importação. “O aumento da importação do GNL [gás natural liquefeito] não vai ocorrer automaticamente se a Petrobrás sair dos seus terminais de regaseificação. Ela vai aumentar se o preço internacional, particularmente o da Ásia e do Pacífico, for competitivo para viabilizar a importação de gás natural que vai competir sempre com o custo de produção do gás doméstico e com o custo dos combustíveis alternativos que precificam, por exemplo, o gás da Bolívia. Esses elementos não são mudados pela lei”, explicou Gabrielli.