Memórias: “Sindicato é a minha vida, com as alegrias e tristezas”, admite Osvaldinho

Osvaldo Francelino Miguel, mais conhecido como Osvaldinho, possui uma longa trajetória no Sindipetro, no Partido dos Trabalhadores (PT) e no bairro onde vive em Campinas, o Nóbrega

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Caçula de seis irmãos, Osvaldinho trabalhou desde os nove anos para ajudar a família (Foto: Guilherme Weimann)

Por Guilherme Weimann

Quase todo mundo possui uma canção – ou mais de uma – que parece ter sido escrita para narrar a sua própria trajetória – ou pelo menos alguns momentos marcantes, muitos deles doloridos, que são justamente os responsáveis por fazer com que as pessoas se recordem da própria existência. Muitas vezes, entretanto, é difícil discernir se essas obras apenas refletem os fatos ou se elas funcionam como profecias autorrealizáveis, que, de tão inspiradoras, acabam ajudando a moldar a narrativa – concreta – que cada um constrói da própria vida.

Além disso, fica a questão: como pode uma música servir para tantas histórias individuais, que guardam peculiaridades únicas e, por isso, são impossíveis de serem replicadas? Também não há dúvida de que diversas pessoas já pensaram em processar, por danos morais – e sentimentais, diga-se de passagem –, artistas que plagiaram exatamente os seus sentimentos, estados de espírito ou indignações (quem nunca sofreu por dor de corno ou de separação que atire a primeira pedra).

Apesar de todas essas considerações, é impossível não enxergar as semelhanças dos versos que estão entre os mais cantados pelos violeiros desde que foram compostos, há mais de 30 anos, e as memórias de Osvaldo Francelino Miguel. Osvaldinho, como é conhecido nos quatro cantos do país, não tem pudor em replicar: “Levo esse sorriso, porque já chorei demais”.

Infância

Osvaldinho veio ao mundo no dia 31 de maio de 1953: “Eu nasci em casa. Todos nós nascemos em casa, nenhum de nós teve esse privilégio de nascer em hospital. Tanto é que eu era gêmeo e o meu irmãozinho morreu oito dias após o nascimento. Nós fomos os caçulas”. Os seis irmãos da família Francelino Miguel nasceram numa casa humilde de Mirassolândia, uma cidade de cerca de quatro mil habitantes localizada na região metropolitana de São José do Rio Preto.

Com apenas um ano, Osvaldinho já conheceu a estrada. Após sofrer um acidente na no sítio onde trabalhava que quase o deixou cego, seu pai decidiu buscar a sorte em uma cidade vizinha, um pouco maior, chamada Nova Granada: “Ele foi buscar a sorte em uma cidade um pouco maior em busca de sobrevivência. Vendia doce e sorvete na rua. Minha mãe, analfabeta, lavava roupa pra fora. Vivi a história da maioria dos brasileiros: casa simples, fogão de linha, banho de bacia”.

Quando tinha nove anos, passou por mais uma mudança, dessa vez para uma cidade de médio porte: “Minha irmã Nenê foi trabalhar em São José do Rio Preto com uma família turca e acabou levando a gente também”. Pouco mais de um ano, todavia, perdeu seu pai, o que acabou forçando sua maturidade precoce: “Com nove anos eu já tava na rua vendendo pirulito, laranja, trabalhando na feira, catando reciclável”.

Nessa realidade permaneceu até os 16 anos, quando então completou sua ascensão demográfica: “Meu irmão mais velho, o Zé, veio pra Campinas e me trouxe junto. Fui morar no fundo da padaria, ali na Vila Nova, na Imperatriz Leopoldina. Eu dormia em cima de saco de farinha, foi um dos períodos mais difíceis da minha vida. A gente cozinhava em um fogão jacaré, que era à base de querosene, e que deixa cheiro em toda a comida. Eu era o caçula, bajulado pela mãe, e de repente me vejo numa cidade grande, sozinho”.

Vida adulta

Pouco tempo depois de se estabelecer em Campinas, sua mãe e irmãos também se mudaram para a cidade, onde compraram um terreno no bairro São Quirino e construíram uma casa com dois cômodos. E, mesmo com os perrengues de uma rotina extenuante causada pelo trabalho na padaria, Osvaldinho arrumou uma namorada: “Eu me apaixonei e queria estar junto toda hora, de dia e de noite. Comecei a namorar a Luiza em novembro de 1972, no dia da inauguração da Lagoa do Taquaral, e me casei um ano e um mês depois, no dia 15 de dezembro de 1973”.

Na época, a emancipação ocorria apenas aos 21 anos. E como tinha apenas 20, Osvaldinho precisou da autorização da mãe para poder se casar. Mas não foi apenas essa ajuda que recebeu da matriarca: “Eu fui morar no fundo da casa da minha mãe. Meu irmão trabalhava na 3M e os computadores vinham numas placas de madeira. Peguei essas placas e construí meu barraco, de um cômodo, coberto de telha de Brasilit”.

Pouco tempo depois da ‘lua de mel’, viveu uma situação que, hoje, representa um dos seus maiores arrependimentos. “A Luiza era metalúrgica e eu padeiro. E ela ganhava mais do que eu. Daí minha mãe, com uma cabeça muito atrasada, me disse: ‘Você é um vagabundo, está sendo bancado pela mulher’. Foi aí que eu cometi a maior imbecilidade da minha vida. Falei pra Luiza: ‘Ou você sai do trabalho ou o nosso casamento acabou’. E a Luiza pediu a conta. Eu dou esse depoimento para que sirva de exemplo para que ninguém cometa a imbecilidade que eu cometi, fruto do machismo”.

Trabalho

Sua vida começou a mudar – em diversos sentidos – quando tomou coragem para prestar o concurso da Petrobrás, mesmo com pouca esperança de passar: “Eu comecei dobrando na Petrobrás, que é ficar dois turnos seguidos. Eu trabalhei a noite na padaria, entrei 7h na Replan [Refinaria de Paulínia], e fiquei até o fim da tarde. Então se você pegar minha carteira de trabalho, minha data de saída da padaria e de entrada na Petrobrás é a mesma: 16 de setembro de 1974”.

Para passar no concurso de vigilante, eram necessários três pré-requisitos, ter prestado o serviço militar, possuir carteira de motorista e ter pelo menos 1,70 metro: “Eu só tinha um deles, que era ter servido o Exército. Não tinha carteira de motorista e tinha, até então, 1,68. Tinha, porque desde então eu digo que tenho 1,70. Isso porque quem fazia o processo de triagem era o Gilberto Gonçalves, que hoje é dono do Jornal do Taquaral e na época era enfermeiro na refinaria. Ele me mediu e disse: ‘Moleque, você tem 1,70. Porque se eu não por 1,70, te cortam! Então, ô filho da puta, se te perguntarem você tem 1,70, beleza?’. Foi meu primeiro anjo da guarda, me cresceu dois centímetros com uma canetada”.

Superados esses primeiros obstáculos, Osvaldinho teve que se deparar com uma função, de vigilante patrimonial, que não o deixava à vontade: “Me incomodava muito ter que restar os colegas de trabalho. E daí um dia o supervisor da segurança, que era um major que tinha combatido na Itália, me chamou e disse: ‘Osvaldo, todos os seus colegas de trabalho trazem, toda semana, uma comunicação pra mim. Você, até hoje, não tem nenhuma comunicação. Você nunca viu alguém pegando um prego na refinaria?’. Daí eu falei, olhando sério pra ele: “Major, eu tenho culpa se quando eu estou na portaria todo mundo fica com medo e nem tenta sair com alguma coisa?”.

Além disso, Osvaldinho teve que tirar a carteira de motorista, já que uma das atribuições dos vigilantes era dirigir a ambulância. Para um jovem de 20 anos, que nunca havia dirigido nenhum veículo, essa experiência rendeu algumas boas histórias, incluindo racha na madrugada, capotamento e passar entre dois carros em uma rodovia de mão única: “Eu gosto muito de uma música do Osvaldo Montenegro que diz: ‘Quantos segredos você guarda, que hoje são bobos e ninguém quer saber?’ Hoje eu posso contar essas histórias, porque não vai prejudicar ninguém”.

Como vigilante, Osvaldinho atuou por sete anos, de 1974 até 1981. Nesse período, concluiu os estudos, já que havia entrado na Petrobrás apenas com a quarta série completa: Na época, o pessoal chamava a quarta série de grupo. Logo em seguida, eu fiz o supletivo do ginásio em uma escola aqui de Campinas que se chamava Evolução. Aí quando eu terminei o ginásio já entrei direto na ETECAP [Escola Técnica Estadual Conselheiro Antônio Prado] para fazer Química, de 77 a 80. No fim de 80, eu prestei um concurso interno da Petrobrás, aí a vaga que me ofereceram era para Cubatão”.

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Osvaldo migrou para o laboratório em 1981, após se formar técnico em química

Foi então que Osvaldinho foi com a família toda para o litoral paulista – na época, já haviam nascido dois dos seus filhos, Clodoaldo e Miriam: “Economicamente foi um período muito difícil, mas em termos familiar e de vida foi maravilhoso, porque trabalhar seis horas é outra vida, outro mundo. No laboratório da RPBC [Refinaria Presidente Bernardes] eu fiquei de 81 até 83. Foi lá, inclusive, que nasceu a minha terceira filha, a Gisele”.

Apesar dos bons momentos compartilhados em família, Osvaldinho decidiu voltar para a Replan, coincidentemente na véspera da histórica greve de 1983: “Eu voltei no dia 1 de junho e a greve começou no dia 6 de junho. Mas eu tinha férias vencidas pra tirar, então voltei e já me colocaram de férias. Quando eu soube que a refinaria estava caçando trabalhadores em casa para furar a greve, foi aí que eu sumi mesmo”.

Sindicato

No laboratório da Replan, que na década de 80 possuía cerca de 70 trabalhadores, era comum a realização de uma eleição para definir um nome para ser o representante do setor. Foi então que Osvaldinho entrou para o Sindicato dos Petroleiros de Campinas: “Naquela época, a ideia era que todos os setores da refinaria se sentissem representados no sindicato. Foi aí que, numa votação, escolheram meu nome para ser o representante do laboratório no sindicato”.

Mas, principalmente naquela época, ser dirigente sindical previa abrir mão de muita coisa, principalmente a convivência diária com a família: “Quando eu entrei, falei pra Luiza que aquele seria o primeiro e o único mandato. Mas daí o Ronaldo [Hipólito], que era minha referência, me disse: ‘Você precisa renovar, cara! Está todo mundo falando que você foi muito bem, que se dedicou pra caralho!’. Mesmo assim, eu relutei”.

Mas, apesar de resistir, acabou cedendo: “Para a gestão de 90 a 93, nós éramos em 10 diretores, pra apenas cinco que seriam liberados. Aí começamos a discussão para definir esses nomes num bar na Regente Feijó, que chamavam de Barbuleta. Fomos pra lá às 8h da noite e ficamos até às 4h da manhã. Foi voto aberto, nós estamos em 42 pessoas, se não me engano. Voto aberto, levanta a mão, tinha que escolher dos 10, cinco. Fulano, Beltrano, Ciclano… Volta pra base: o Wagner, que era o então presidente, e o Moreira. Permanece o Paulo Jabuti, o Muzambinho e o Santarosa. Entra o Silvio e eu. E daí, depois que me escolheram, não tinha como eu voltar atrás”.

A decisão, entretanto, não foi fácil: “Fiquei uns dois dias sem dormir, pensando em como contar pra Luiza. Daí ela chegou um dia e perguntou o que estava acontecendo. Eu falei que não tava acontecendo nada. Daí ela falou: ‘Como nada? Você tá sem dormir há duas noites, alguma coisa está acontecendo’. Daí eu falei: ‘Eu decidi ficar no sindicato e, além disso, eu vou ser liberado a partir do mês que vem’. Daí ela olhou bem pra mim e disse: ‘Eu sabia que você ia ficar no sindicato, o cachorro da rua sabia. Só você que tava negando. O sindicato te tira de mim, te tira dos seus filhos. Mas é um direito seu e eu te respeito’”.

Foi, com esse aval – dado a contragosto –, que Osvaldinho se enfiou de vez, de corpo e alma, no trabalho sindical. Das diversas histórias e pessoas que conheceu, talvez um episódio resuma, da forma mais fidedigna possível, as tristezas e as alegrias desse período: “Eu estava no Comando, que era o embrião da FUP, quando a gente começou a discutir o acordo coletivo de 1993. O Collor tinha demitido 900 petroleiros e eu estava negociando, junto com outros companheiros, a readmissão deles lá no Rio de Janeiro. Daí um dia eu sou abordado na porta do EDISE [ Edifício Sede da Petrobrás] por uma senhora: ‘Meu marido foi demitido! Tô aqui com duas crianças e você não faz nada, não faz nada…’. Eu respondi: ‘Olha, eu também tenho três crianças. Tô fora de casa faz mais de 15 dias, justamente pra defender o seu marido. Agora a senhora não tá metendo o dedo no peito daquele engravatado, que foi quem demitiu o seu marido’. Aí uns caras foram cercando a encantoando a gente e, de repente, eu vejo um saco vindo na minha direção: ‘Paaaah!’. Era um saco de urina e merda, que bateu no chão e bateu em cheio na barra da calça. A minha categoria jogou merda em mim”.

Apesar do entrevero, o acordo coletivo daquele ano garantiu o retorno de 450 dos 900 demitidos: “O sindicato representa a minha vida. Tudo que eu aprendi, que eu cresci, que eu vivi foi por conta do sindicato. Se eu não tivesse militado aqui, se eu não tivesse aqui, não teria vivido nada disso. Apesar das dores que eu sofri aqui dentro, e das alegrias também, o sindicato foi e é a minha vida”.

No ano seguinte, em 1994, Osvaldinho decide se aposentar, aos 40 anos: “Um cara que começou a trabalhar com 9, não é fácil sobreviver trabalhando até os 40. Fazendo turno de 12 horas. Passei muitos natais, viradas de ano e carnavais na refinaria… Eu entendia que tinha cumprido meu período laboral, que foi de 31 anos de labuta. Não tem que ter medo de aposentar. Acho um absurdo o cara aposentar pensando no outro dia em como ganhar dinheiro. Se fosse pra ganhar dinheiro, continuaria dentro da fábrica. Pra mim, você até pode se livrar da primeira escravidão, mas da segunda não”.

Aposentadoria

Contraditoriamente, a aposentadoria aumentou ainda mais a sua atuação dentro e fora do sindicato: “Assim que me aposentei eu já virei presidente do fundo de greve, em 94. Eu que assinava os cheques para os trabalhadores que foram demitidos na greve de 95. Também fiquei envolvido com o trabalho no meu bairro, comecei a tocar o time de futebol. E também passei a ter mais tempo para a Luiza e para as crianças, não tinha mais que ir de domingo pra fábrica”.

E em 1996, decidiu viver outra experiência marcante, que foi se candidatar a vereador em Campinas pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Logo de cara, decidiu ocupar um terreno ocioso no seu bairro, a Vila Padre Manoel de Nóbrega, para fazer de comitê eleitoral. Além disso, fez uma campanha de arrecadação de latinhas, que se tornaram a principal fonte de recursos: “Foi um momento de experiência rica que eu não quis repetir depois. Porque foi tão boa, que se tivesse repetição não seria tão boa daquele jeito. Foi muito legal”.

Pouco tempo depois, em 2000, tornou-se administrador regional do seu bairro: “De 2000 a 2004 eu fui administrador regional, que dentro da estrutura da cidade de Campinas, seria equivalente a um subprefeito. Também foi uma experiência muito bacana”.

Desde então, tem se engajado em praticamente todas as pautas sociais e continua, até hoje, na direção do Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo (Sindipetro-SP).

Vida

Por mais que ‘Tocando em Frente’ possa representar grande parte das suas memórias, o primeiro verso da música não se enquadra na filosofia de vida de Osvaldinho, que nunca andou devagar, sempre teve pressa: em viver, em lutar, em sonhar. Apesar de ter perdido sua companheira de toda uma vida, em 2021, não deixou de seguir em frente, com sede e vontade de vivenciar o novo.

Oswaldinho
Osvaldinho, em foto tirada recentemente (Foto: Guilherme Weimann)

“O homem deixa de viver quando deixa de sonhar. O sonho faz parte. Eu sempre costumo dizer que a morte só vai me pegar numa esquina, distraído. A hora que eu virar, ela me pega. Porque se ela me avisar, eu viro pra outra rua. Eu gosto da frase do Mário Lago: ‘Eu fiz um acordo com a morte. Nem ela me percebe, nem eu fujo dela, um dia a gente se encontra’. Pra mim a vida é isso”, define Osvaldinho.

E, quando a morte o pegar distraído numa esquina, espera que sua memória seja a de alguém que se manteve firme nas suas crenças: “Eu quero ser lembrado como um cara que nunca abriu mão das suas convicções. E como um cara que nunca se vendeu por dinheiro nenhum”.

Enquanto isso, segue em busca de amor, pra poder pulsar, e paz, pra poder sorrir. 

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