Práticas norte-americanas de combate a governos progressistas na América Latina devem continuar, aponta professor Igor Fuser
A confirmação da vitória de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos produziu mais alívio do que euforia. Ao contrário do que aconteceu na eleição do também democrata Barack Obama, primeiro negro a comandar a maior economia do mundo.
A análise é que o grande feito de Biden foi tirar do poder – ao menos depois que for confirmado como presidente – uma das maiores referências para a extrema-direita no mundo.
A ausência de expectativas não é fortuita. O vice de Obama apoiou a invasão do Iraque e estava no governo em todos os golpes recentes nas Américas que contaram com apoio dos EUA, como Honduras, em 2009, Paraguai, em 2012 e, claro, Brasil em 2016.
Por conta disso, a perspectiva é que os EUA mantenham a mesma política de repressão a qualquer alternativa progressista na América Latina, como aponta o doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), Igor Fuser.
Para ele, porém, os caminhos a serem seguidos não serão de enfrentamento direto, mas sim de construção política.
Em entrevista ao Sindicato Unificado dos Petroleiros de São Paulo, Fuser afirma ainda que Obama estabeleceu relações mais próximas com Cuba e algo semelhante pode se repetir.
Como a vitória de Joe Biden afeta a América Latina e mais especificamente o Brasil?
Igor Fuser – Biden deve manter, nos aspectos essenciais, a mesma política que já vinha do governo Trump. Que por sua vez já vinha do governo Obama. Os Estados Unidos estão muito interessados, utilizando sua força política, econômica e militar, em realinhar a América Latina às posições e interesses dos EUA no plano global. A prioridade é combater os governos de esquerda para reverter o ciclo progressista que se mostrou muito forte na década passada e no início de 2010. Não podemos esperar nenhuma mudança nos traços essenciais porque isso não depende do partido político que está no poder, está atrelado aos desejos da classe dominante nos Estados Unidos.
Por outro lado é possível que haja diferença em relação a questões específicas. Obama, por exemplo, desenvolveu um movimento de normalização das relações com Cuba. Esteve em Havana, onde foi recebido por Fidel Castro, iniciou um processo de amenização das sanções, que não foi muito adiante porque encontrou oposição dentro do Congresso e depois foi enterrado com Trump.
Mas, mais importante do que isso é a declaração do Biden de que é contra o uso da violência contra governos que não estão sintonizados com o ponto de vista dos EUA na América Latina. Ele irá continuar a campanha do que chamam de mudança de regime na Venezuela para derrubar o governo legítimo do presidente Nicolás Maduro, mas, talvez, com menos ênfase na possibilidade de intervenção militar na região. E pode reduzir o apoio às forças politicas venezuelanas que estão mais interessadas numa mudança violenta, representadas por Juan Guaidó e seu partido, apostando numa alteração por meios políticos.
“A prioridade (dos EUA) é combater os governos de esquerda para reverter o ciclo progressista que se mostrou muito forte na década passada e no início de 2010”
A política internacional brasileira tende a estar ainda mais isolada com a derrota de Donald Trump?
Fuser – Bolsonaro perde um ponto de apoio, aquele a quem elegeu como referência na extrema-direita, seu líder e guru. Tudo isso coloca o Brasil ainda mais isolado do que já estava, como nunca esteve em sua história e mais irrelevante ainda no cenário internacional.
A derrota de Trump também tem um efeito simbólico e psicológico, de rompimento de ascensão das forças de exterma-direita, fascistas, como se isso fosse o sentido da história, como se os ventos da história estivessem soprando nessa direção.
Isso enfraquece de alguma forma Bolsonaro, mas é muito mais simbólico do que real. Não é isso que o faz enfraquecer, mas sim o fracasso das políticas internas.
Mas essa vitória de Biden pode causar algum impacto interno?
Fuser – Setores do grande capital brasileiro podem ser levados a perceber que o fascismo e esse estilo truculento de governo do Bolsonaro, baseado em fake news, em discurso de ódio, preconceito e em exacerbar polaridades existentes no cenário brasileiro tem fôlego curto, limites muito precisos. E reversões no cenário internacional podem abalar bases de apoio ao discurso do Bolsonaro. Porque se Trump tivesse ganho, seria um endosso ao Bolsonaro sob o olhar das classes dominantes e dos chefes militares, quem realmente o sustenta no poder.
O alto oficilato é muito americanófilo, há um alinhamento muito forte entre cúpula das forças armadas brasileiras e os EUA. Inclusive, dificilmente vão endossar um discurso antiestadunidense. E tendem a perceber os limites dessa linha extremista.
As bolsas reagiram bem às últimas eleições americanas. Por quê?
Fuser – O Trump é um elemento de instabilidade, imprevisibilidade no comando do país mais importante do mundo. A mudança do Trump para o Biden traz elemento de previsibilidade, sensatez e equilíbrio. Biden é um representante da elite do establishment, do sistema. Jamais dará qualquer passo que não seja extremamente ponderado e afinado ao Wall Street, o mundo das finanças, dos grandes negócios dos EUA.
Porém, terá de levar em conta, principalmente nos assuntos internos, a base social do Partido Democrata, que inclui as classes populares, o movimento negro que foi decisivo para sua vitória, os sindicatos e setores progressistas. Vai ter que incorporar uma parte da agenda desses setores se não quiser alienar boa parte de sua base de apoio.
Mas Bolsonaro não representa a mesma instabilidade? Por que esse apoio do grande empresariado se mantém por aqui?
Fuser – O empresariado brasileiro continua apoiando o Bolsonaro porque ele realiza a agenda do grande capital. O que chamam de reforma é um programa extremamente conservador de concentração de riqueza e eliminação de direitos que está sendo implementada ao pé da letra, a partir da atuação do ministro Paulo Guedes no campo da economia.
Toda a agenda neoliberal, da renúncia à soberania nacional, entrega das riquezas nacionais, a destruição da Previdência, tudo isso está sendo feito como a burguesia gosta. Para levar adiante essa agenda, o estilo truculento é a melhor maneira.
Enquanto o Bolsonaro se mostrar um instrumento eficaz nesse sentido, contará com apoio ao menos até o final do seu governo. No final, o grande capital terá um grande dilema para resolver, se renova esse endosso ao Bolsonaro ou se tenta colocar na presidência um representante mais confiável e que seja mais orgânico da classe dominante.
Mas, do ponto de vista prático, Bolsonaro só trouxe benefício a esses setores, por isso as propostas de impeachment não tiveram apoio.
Isso pode mudar se houver uma crise com a China, por exemplo, que afete o agronegócio, mas, enquanto isso não acontecer, vão adiando a decisão do que fazer em 2022.
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Como você acredita que os EUA de Biden irão se relacionar com blocos comerciais como o Mercosul a partir do Biden?
Fuser – Os Estados Unidos têm como prioridade na América Latina o combate aos governos de esquerda. Outro ponto tão importante quanto esse é deter a influência chinesa na região. Farão de tudo para enfraquecer os vínculos econômicos, financeiros e comerciais dos países da América Latina com a China.
A grande batalha que travam nesse momento é a respeito da nova tecnologia de internet 5G e os EUA pressionam todos os países do mundo a rejeitarem a adoção do padrão tecnológico da empresa chinesa Huawei, optando pelo modelo estadunidense. O governo Bolsonaro já acenou nesse sentido, embora não tenha adotado uma posição clara a esse respeito.
Biden era vice de Obama, quando o site Wikileaks denunciou que 29 integrantes do governo da presidenta Dilma Rousseff foram grampeados e o novo presidente já disse que irá rearticular campanhas anticorrupção no continente. Podemos esperar novas operações golpistas pintadas com o verniz anticorrupção, como a Lava-Jato?
Fuser – No Brasil, a Lava Jato já cumpriu seu papel e é página do passado. O tema da corrupção como foi instrumentalizado pela direita brasileira, que atua em conformidade com os interesses dos Estados Unidos, já foi esgotado. Há poucos governos que ainda faltam ser derrubados.
Já há certo cansaço sobre esse tema, mesmo entre setores da classe média, que aderiam com entusiasmo em vários países.
Não vejo possibilidade da retomada de uma agenda anticorrupção nos moldes dessas grandes operações de desestabilização.
Temos um cenário na América Latina muito mais fragmentado e os governos de direita e dos EUA vão ter de encontrar maneiras de se situar diante dessa nova realidade. Terão de definir como irão se comportar diante do governo da Bolívia, por exemplo, de esquerda e que se instala renovado. Muito mais forte hoje do que há dois anos, com Evo Morales, desgastado e aplicando políticas equivocadas. O Luís Arce é um presidente respaldado por 55 milhões de votos e vencedor no primeiro turno.
O Chile caminha para a instalação de uma assembleia constituinte fruto de gigantescas manifestações populares, as maiores do país.
Não há espaço para uma agenda anticorrupção neste cenário.
Na Venezuela, o que está em jogo é a sobrevivência do país e da própria população, a agenda anticorrupção por lá já existe, mas está muito longe de constituir tema central. O mesmo no Equador.
Não é o mesmo cenário que havia no governo do Obama, mesmo no de Trump. Não é uma América Latina polarizada entre forças de direita e esquerda. Essa menção do Biden para ter um efeito mais retórico do que formal.
Sem essa agenda, quais outros flancos os EUA poderiam mirar?
Fuser – Mais ainda do que no caso do Trump, utilizarão o discurso da democracia. E com Biden muito mais do que com Trump, porque não se trata de um extremista e fascista.
A grande peça retórica na América Latina contra algum governo que queiram desestabilizar será a da democracia.
A insistência em chamar a Venezuela de ditadura, com um presidente legitimamente eleito e com eleições legislativas marcadas para ocorrerem em dezembro, com a participação de grande parte da oposição de direita, inclusive com Henrique Capriles, que concorreu com Chávez e Maduro, enfraquece o discurso intervencionista.
Diante de um país que se coloca de uma maneira tão subserviente aos EUA, como é o caso do Brasil, uma suposta agenda de equilíbrio ambiental como a de Biden pode favorecer o país?
Fuser – Eu não acredito que o Biden vai enfatizar a agenda ambiental na relação com o Brasil. Ele está plenamente consciente da importância do Brasil na América Latina e no mundo. Ao contrário do Trump, sabe onde fica, é alguém que já esteve aqui várias vezes, conhece muito bem a América Latina.
Ele tentará forçar uma agenda de colaboração com o Bolsonaro. Para os EUA é muito importante ter o apoio do Brasil na luta global contra a China e a Rússia. Pouco importa quem seja o presidente brasileiro.
O que será correspondido, essa postura agressiva do Bolsonaro é bravata. Com o tempo, vai baixar a bola e buscar uma relação cooperativa, porque o traço principal da política externa brasileira não muda absolutamente nada, segue com o alinhamento completo e incondicional aos EUA, com apoio da totalidade da classe dominante da burguesia brasileira.
Em algum momento, o governo Biden fará pressão ao governo brasileiro em relação à pauta ambiental, principalmente, sobre a proteção à Amazônia. Deve haver algum atrito nesse ponto, mas não será por causa da Amazônia que esses dois governos entrarão em rota de colisão, porque o que os une é infinitamente mais importante do que o que os separa.
“Eu não acredito que o Biden vai enfatizar a agenda ambiental na relação com o Brasil.”
A Amazônia não está em jogo, não há nenhum governo que queira anular a soberania brasileira sobre a Amazônia. As vozes que se levantaram em favor da preservação, contra um governo que está claramente empenhado em destruir e transformar em pastagem e plantação de soja, são positivas. Como nós, querem a preservação da florestas e das comunidades indígenas.
O maior inimigo da natureza e da população local, sobretudo dos povos indígenas, é o governo brasileiro, as Forças Armadas e a igreja evangélica, que está empenhada em catequisar os índios, destruindo sua cultura.