A terra treme: os abalos sísmicos escondidos por Vaca Muerta

Desde o início da exploração petroleira baseada no fracking, já foram registrados mais de 300 tremores na região localizada na província de Neuquén, na Argentina 

Foto: Pablo Piovano

Vaca Muerta é uma grande formação de hidrocarbonetos não convencionais, que ocupa 36 mil km² na província de Neuquén, na Argentina, na fronteira com o Chile. Sua descoberta data de 1927, mas seu potencial econômico foi confirmado em 2011. Desde que começou a exploração petroleira baseada na técnica do fracking em Vaca Muerta, os movimentos sísmicos se multiplicaram. Ocorreram ao menos 206 abalos entre 2015 e 2020 e mais de 40 nos últimos dias. Com o objetivo de trazer um alerta aos brasileiros, a FUP traduz esse texto publicado originalmente na Agência de Notícias Tierra Viva*. 

Por Maxi Goldschmidt, Sauzal Bonito, Neuquén, Argentina | Fotos: Pablo Piovano | Tradução: Marcelo Aguilar | Revisão: Guilherme Weimann

Um povoado começa a tremer do nada. Um sismo, dois, trinta num mesmo dia. O povoado se chama Sauzal Bonito, e fica na província de Neuquén, na Patagônia Argentina. Lá moram cerca de 200 famílias, que nunca tinham sentido o que virou costume nos últimos três anos: explosões debaixo da terra. As casas racham, as estantes caem, as crianças choram.

“Não damos conta de tirar todos nossos filhos lá para fora”, dizem as mães que no meio da noite, quando começam os tremores, têm que escolher quais dos seus filhos resgatar primeiro. Desde o dia 14 de julho, Sauzal Bonito tremeu mais de 60 vezes. Localizado há 100 quilômetros da capital da província, a comunidade fica no departamento de Confluencia. Os moradores vivem da agricultura e da pequena pecuária. Ninguém passa chave na porta. Ao povoado, que acompanha as margens do rio Neuquén, ainda não chegou o gás natural. Do outro lado do rio, se ergue um dos orgulhos de Vaca Muerta: o campo Fortín de Piedra, onde a companhia de Paolo Rocca (Tecpetrol) extrai 13% do gás do país.

Foto: Pablo Piovano

Informação confidencial

Em Sauzal Bonito, ninguém tem dúvidas. Desde que começaram as perfurações petrolíferas com a técnica do fracking, surgiram também as explosões e os abalos sísmicos. Entretanto, nem o Estado, e muito menos as empresas petrolíferas, assumem publicamente o que a ciência afirma – e as provas confirmam. Enquanto isso, os tremores são mais frequentes, mais fortes e já se sentem em cidades como a capital de Neuquén, que leva o mesmo nome da província.

Paralelamente, as petrolíferas pagam estudos sismológicos e o governo da província assina um convênio de confidencialidade com o Instituto Nacional de Prevenção Sísmica (Inpres), órgão nacional responsável pela prevenção de sismos. Por conta disso, o Instituto não publica em seu site os abalos registrados com valor menor de 3 ML (Magnitude Local).

Em 2019, a Grã-Bretanha proibiu o fracking para evitar terremotos. Antes disso, o país utilizava um sistema parecido com o dos Estados Unidos, da Espanha e do Canadá. Quando os sismos superam 1,5 graus, suspendem automaticamente as perfurações. Em Vaca Muerta, a lógica é outra: ocultar para que ninguém “descubra” e, principalmente, para que a indústria não seja paralisada.

Foto: Pablo Piovano

Encobrimento perigoso

Os trabalhos no campo Fortín de Piedra começaram em 2017. Sauzal Bonito completava um ano sob os efeitos de tremores da terra quando chegou o mais potente: 4,3 na escala Richter. Foi no dia 15 de novembro de 2018. Na época, a Subsecretaria de Meio Ambiente de Neuquén enviou um pedido de informações à Subsecretaria de Energia, Mineração e Hidrocarbonetos da província para saber mais informações sobre o vínculo entre a indústria e os tremores. A nota nunca foi respondida.

No dia 9 de janeiro de 2019, ocorreu um novo sismo de magnitude 4 na região e, durante os dias 23 e 24 do mesmo mês, Sauzal Bonito tremeu 37 vezes em 36 horas. Os moradores decidiram interditar a estrada. A notícia circulou na imprensa. O governo de Neuquén prometeu instalar 20 sismógrafos na área. Hoje, mais de dois anos depois, a diretora do Inpres confirma que o órgão só conseguiu instalar dois sismógrafos.

Desde Sauzal Bonito, Adrián Sandoval, de 41 anos, nascido e criado no povoado, conta: “dois anos atrás veio um pessoal do governo provincial e da Universidade Nacional de San Juan. Nos fizeram perguntas, tiraram fotos, colocaram os sismógrafos. Mas, no mês seguinte, quando vieram recolher os equipamentos, disseram para nós que não tinham autorização para falar. E do governo nunca nos responderam sobre os resultados levantados pelos sismógrafos. Ninguém quer assumir a responsabilidade”.

Foto: Pablo Piovano

Sismos comprovados pela ciência

Javier Grosso ditava aulas de geografia em um instituto de formação docente. Quando chegou a hora de abordar o assunto das placas tectônicas, utilizou o exemplo que via nas notícias: os sismos de Sauzal Boito. Acostumado a ingressar na base de dados públicos do Inpres, chamou sua atenção que os tremores aconteciam muito longe da Cordilheira e a profundidades baixas. O geógrafo da Universidade Nacional do Comahue, perguntou-se: “porque tantos e tão próximos da superfície?”.

O argumento que repetem funcionários e empresas é que Neuquén é uma província sísmica. O que não dizem é que a sismicidade se mede de acordo com as zonas, e que Vaca Muerta se encontra em uma zona com “atividade sísmica reduzida” ou “muito reduzida”, segundo o Instituto Nacional de Prevenção Sísmica.

“Um sismo de intensidade 3 ou 4 é análogo a uma explosão de uma planta de gás. Se isso acontece a 100 km de profundidade é imperceptível. Porém, isso muda se a liberação ocorre a 3 ou 4 km, que coincide com a fratura horizontal realizada pelo fracking na região”, explica Grosso. Com seu colega Guillermo Tamburini Beliveau, geógrafo do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Conicet), glaciologista e cartógrafo, começou a cruzar dados e informações para tentar entender o que está acontecendo em Sauzal Bonito.

“Quando localizamos todos os sismos e fizemos o georreferenciamento, vimos que havia muitos em pouco espaço, num lugar onde não havia antecedentes. Quando sobrepusemos os poços com os sismos, confirmamos que estavam muito próximos, não mais do que 10 ou 15 quilômetros”, explica Grosso. Além dele e Tamburini, outros cientistas estudaram a evolução sísmica da bacia de Neuquén do ponto de vista geológico e sísmico. Um desses estudos identificou 206 sismos entre 2015 e 2020 (mais de 130 em comparação aos publicados pelo site do Inpres até o momento) e concluiu que há uma relação direta entre a nova dinâmica sísmica e o avanço do fracking.

Foto: Pablo Piovano

Os tremores nos poços

“Sismos há constantemente. Eu trabalho há anos na indústria do petróleo e nunca tinha sentido abalos, agora são cada vez mais recorrentes. Nas fraturas de shale é preciso utilizar muita água e areia. Depois de uma mega fratura dessas, meses depois dá para sentir os abalos. São como golpes de terra. Os equipamentos pulam, se mexem. A primeira vez que senti um, foi impressionante”, afirmou um petroleiro que pediu para não ser identificado.

Em Vaca Muerta, uma das condições para ser contratado é aceitar o silêncio sobre o que ocorre dentro dos campos. “Uma vez, depois de um abalo, descemos os três quilômetros e quando chegamos ao setor de fratura horizontal o cano tinha sumido, a terra tinha tragado ele e só se via a rocha”, afirma outro trabalhador, que também solicitou que sua identidade não fosse revelada.

Foto: Pablo Piovano

Qual a versão do órgão oficial que mede os sismos?

Patricia Alvarado tinha dez anos em 1977, quando viveu um grande terremoto. Foi em San Juan. Naquela ocasião, dezenas de pessoas morreram. Mas seus pais lembravam de um pior: o de 1944. “Foi o maior desastre natural da história da Argentina: colapsou todo o aparato produtivo da província, muita gente teve que migrar, houve milhares de mortos e feridos. Isso me marcou e me levou a estudar sismologia”, conta Alvarado, doutora em geologia, integrante do Observatório Sismológico do Conicet, professora de Geofísica na Universidade Nacional de San Juan, e desde maio a primeira diretora do Instituto Nacional de Prevenção Sísmica.

“A primeira surpresa ao chegar ao Inpres é que não há equipamento nem pessoal”, afirma Alvarado, uma das poucas funcionárias que aceita ser entrevistada por este assunto,  que causa incômodo às empresas e ao Estado. Alvarado reconhece que “ há uma carência” na quantidade de sismógrafos: “o Inpres se apoia no mínimo em oito sismógrafos para reportar. Mas no sul do país ainda não temos essa capacidade. Na região de Neuquén foram instaladas duas estações um ano atrás”. E afirma: “Vou ser sincera: a capacidade é deficiente. Há muito poucos. Eu queria ter uma cobertura mínima de dez, e já temos aconselhado que são necessários mais de 20”.

Para a diretora, “seria necessário ter sismógrafos em todas as províncias vizinhas, pois há sismos pequenininhos que são imperceptíveis, e teríamos que estar monitorando o tempo todo para ver se eles crescem ou não. Dessa forma, sim, seria possível prevenir qualquer desastre socioambiental”. Além disso, Alvarado não nega as possíveis relações do fracking com os abalos sísmicos, mas argumenta que falta informação: “O Estado tem que elaborar uma política reguladora. Está tentando, mas não pode comprar todo esse equipamento, é muito caro. Até não termos os instrumentos, ninguém pode elaborar uma política com informações deficientes. São evitáveis os impactos gerados pela indústria, é possível levar de uma forma segura, mas isso demanda tempo”. Após quase uma hora de diálogo telefônico, a diretora do órgão nacional responsável pela prevenção de sismos admitiu: “Estou de mãos atadas, não posso fazer muita coisa”.

Foto: Pablo Piovano

Às pressas 

“Nosso principal desafio era o tempo de execução. Por isso aplicamos a metodologia de trabalho fast tracksobrepondo de um jeito coordenado atividades que normalmente se realizam numa sequência rígida. Graças a isso, conseguimos uma considerável redução do tempo total”, afirma a empresa Tecpetrol, do grupo Techint, que ostenta ter construído o campo Fortín de Piedra em apenas 18 meses. Também conseguiu, ao longo de 2018 e 2019 – graças a um moderno sistema de perfuração simultânea – explorar uma quantidade inédita de poços: 87.

Essa pressa toda teve como objetivo aproveitar o Programa de Estímulo à Produção Não Convencional de Gás da gestão do ex-presidente Mauricio Macri, pelo qual a empresa de Paolo Rocca (um dos homens mais ricos da Argentina) pretendia receber U$S 1,6 bilhão em subsídios. A cifra foi renegociada pelo atual governo, liderado por Alberto Fernández, no marco do Plano Gás.

Este plano é visto com otimismo pela indústria em Vaca Muerta, que em maio atingiu o maior número de fraturas em um mês: 1081. Em Fortín de Piedra, localizada em frente a Sauzal Bonito, atravessando o rio, no ano passado foram superadas as 2400 fraturas, e em Loma Campana (campo que começaram a explorar YPF e Chevron e onde foram estudados os primeiros sismos) já são mais de 6000 os buracos na terra.

Foto: Pablo Piovano

Quem protege Sauzal Bonito?

“São óbvios os motivos pelos quais ocorrem os sismos, mas uma exploração petrolífera é muito difícil de parar, é muito dinheiro para a província. Faz dois anos que vieram e colocaram remendos nas paredes rachadas. Ao lado escreveram a data. Com o tempo isso tudo caiu. Mas eles nunca mais voltaram”, narra o Lonko Eduardo Romero, máxima autoridade da comunidade mapuche Wirkaleo, que também fica em Sauzal Bonito.

Desde seu território, do outro lado do rio e a menos de três quilômetros de distância, ele vê as torres de perfuração do campo Fortín de Piedra. “À noite, dá para ver as luzes, e quando vemos que começam os trabalhos, sabemos que logo virão as explosões. Tudo fica vibrando, as chapas das casas, os vidros. As crianças choram, se assustam, todo mundo fica mal quando isso acontece. Temos medo de que nossas próprias casas caiam em cima da gente. Nem os animais sabem para onde correr”, afirma Eduardo, que nasceu nesta terra há 43 anos e nunca tinha sofrido com sismos.

Moradores de Sauzal acabam de apresentar um mandado de segurança contra a província de Neuquén. O pedido ao Tribunal da Província é para que se intervenha no sentido de garantir o direito de acesso à justiça ambiental que consta no Acordo de Escazú, ao qual a Argentina aderiu meses atrás. Assinado em 2018 na Costa Rica, o acordo busca proteger o Meio Ambiente e a saúde das pessoas, e promove a participação pública e o acesso à justiça em questões ambientais.

Foto: Pablo Piovano

Vaca Muerta: uma tragédia evitável

“Hoje a notícia é que desabou um prédio nos Estados Unidos construído há 40 anos. Mas o reservatório de Rio Colorado, mesmo bem construído, foi feito em 1973, numa zona onde não havia sismos”, explica Javier Grosso. “A cada certa quantidade de sismos de uma determinada magnitude, é previsível a ocorrência de um sismo de maior magnitude. Ou seja, quanto mais sismos são registrados, maior é a probabilidade de que ocorra um de alta magnitude”, explica Guillermo Tamburini Beliveau.

Em 2015, foi registrado na China o maior sismo induzido pelo fracking no mundo: 5,3 na escala Richter. No dia 7 de março de 2019, Sauzal Bonito esteve próximo de alcançar esse recorde: o sismo ocorrido foi de magnitude 5. “A tensão liberada por um terremoto incrementa umas trinta vezes por cada grau de magnitude. Quer dizer que um sismo de magnitude 4 é 900 vezes mais forte do que um de magnitude 2. Um de magnitude 5 é 27.000 vezes maior que o de magnitude 2. Por isso é que não levar em consideração as causas dos pequenos abalos pode se tornar um erro irreparável”, alerta Tamburini, que calcula que desde que começaram as fraturas em Vaca Muerta, foram produzidos na região mais de 300 sismos.

“Passou uma década do primeiro poço exploratório não convencional, que ocorreu em 2011 com a empresa espanhola Repsol. E sete anos do primeiro projeto em escala massiva (470 poços) que foi realizado em Loma Campana, em uma área explorada pela Chevron e a YPF. Após a chegada do fracking, os conflitos e os impactos se agudizaram. E a tendência é que isso aumente nos próximos meses. Há muitas áreas projetadas que passarão para a etapa de perfuração e exploração. Um poço não convencional decai 50% no primeiro ano, e 75% um ano e meio depois. O único jeito de segurar a extração é abrindo mais e mais poços”, antecipa Marín Alvarez Mullally, do Observatório Petroleiro Sur (Opsur), que, além disso, destaca que “esse processo vem junto com a intensidade na aplicação de pacotes tecnológicos, dentre eles a fratura simultânea de poços”. Ou seja: “se já houve todos esses movimentos sísmicos, o que irá acontecer agora que serão mais projetos massivos e com fraturas simultâneas? Sem dúvidas a atividade será mais hostil contra o ambiente e as pessoas”.

As vizinhas de Sauzal Bonito afirmam que com a pandemia, quando as máquinas deixaram de fraturar, acabaram os sismos: “Foi retomar, que logo voltaram os abalos”. O povoado não tem hospital e possui apenas um bombeiro, voluntário, de nome Hugo. Desde que começaram os sismos, Hugo assiste vídeos no Youtube para saber o que fazer em caso de terremoto.

 *Um audiovisual produzido por Ejes, Cartago TV e Observatório Petroleiro Sur traz mais relatos da população de Sauzal Bonito. 

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