Entre desconfianças, antigas alianças e disputas de projeto, petroleiros levam à COP30 e à Cúpula dos Povos a defesa de uma transição energética justa, soberana e popular

Por Vítor Peruch | Fotos: Marcelo Aguilar
Belém amanhece com um cheiro úmido que brota do chão antes mesmo do sol. A cidade parece respirar mais devagar durante a COP 30, como se soubesse que carrega, por um breve intervalo de dias, o peso das decisões que podem redesenhar o destino do planeta. Nas ruas, bandeiras se chocam contra o vento amazônico e se misturam às cores da Cúpula dos Povos, formando um mosaico onde cada grupo reivindica seu lugar no futuro. É nesse cenário de expectativa, tensão e esperança que a delegação petroleira chega – não silenciosa, mas cautelosa, como quem entra num território onde velhas alianças convivem com novas suspeitas.
Instalados no Colégio CESEP, dividindo alojamentos com movimentos historicamente atingidos pelo modelo energético – o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o MAR (Movimiento de los Afectados por Represas) —, os petroleiros pareciam ocupar uma espécie de zona liminar. Ali, entre colchões espalhados pelas salas, emergia uma contradição que marcaria todos os dias da conferência: trabalhadores que sustentam a matriz fóssil do país dormindo lado a lado de comunidades que exigem, com razão, o fim do que os fere. “No oil”, “petróleo no chão, Amazônia de pé”, gritam jovens na marcha. E, no entanto, também é escutada a voz dos petroleiros, exigindo que a transição não seja feita às custas de quem moveu a economia nacional durante décadas.
A COP 30, para os petroleiros, nunca foi apenas uma reunião diplomática. Foi, como define Tezeu Bezerra, dirigente da Federação Única dos Petroleiros (FUP), “uma encruzilhada onde se disputa o futuro energético do Brasil e o destino de milhares de trabalhadores”. Ele lembra que a categoria não se opõe à mudança: “A questão não é se a transição deve ocorrer, mas como – e a serviço de quem”. Em poucas palavras, Tezeu dá forma ao dilema central: a urgência climática exige abandonar os fósseis, mas a velocidade desse abandono pode colapsar vidas e territórios se guiada apenas pelo mercado.
Tanto nos auditórios da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde a Cúpula dos Povos fervilha de debates, como nas Zonas Azul e Verde da COP 30, a presença dos petroleiros é observada com atenção. Há uma tensão evidente, um receio de que defender o petróleo seja sinônimo de negar a crise climática. Mas as intervenções mostram outra narrativa. Quando Bárbara Bezerra, diretora da FUP, toma a palavra, ela deixa claro que a categoria também defende a mudança de matriz: “A gente precisa abrasileirar a transição”, afirma. A frase, aparentemente simples, contém uma ruptura: ela rejeita modelos importados que ignoram a matriz energética brasileira, ao mesmo tempo em que aponta para a necessidade de construir soluções com participação popular.
Petroleiros presentes
Cibele Vieira, diretora da FUP, desmonta a caricatura de que trabalhadores do setor são inimigos da transição. “Nós, petroleiros e petroleiras, queremos saber para quem e para quê estamos trabalhando”, afirma. “A transição precisa garantir empregos, segurança e orgulho do nosso trabalho, e não gerar medo e culpabilização.” O público reage, porque muitos ali compartilham desse sentimento: não se trata de negar o fim gradual dos fósseis, mas de evitar que ele seja conduzido como um experimento sócio-econômico-ambiental sem responsáveis.

Em um seminário da Plataforma Operária e Camponesa da Água e Energia, o debate ganha densidade. Quando Cibele fala novamente, reforça que o petróleo existente hoje deve financiar a própria transição – não para garantir lucros privados, mas para reconstruir o país. Ali, o público escuta com a seriedade de quem vive as consequências desse modelo há décadas. A Amazônia não é um conceito abstrato; é corpo, casa, sustento. E o petróleo, para muitos, não é apenas um vilão climático; é também ferramenta, emprego, política pública, financiamento possível para mudar a rota.
A atmosfera esquenta ainda mais no mesmo painel do Pavilhão Brasil, um dos momentos de maior visibilidade da FUP. Deyvid Bacelar, coordenador-geral da entidade, fala sem rodeios: “Se não tivermos uma transição que inclua diálogo com os trabalhadores, teremos injustiça. São quase 1 milhão de pessoas no setor de óleo e gás que não podem ser deixadas de fora”.
Bacelar eleva o tom ao tratar da soberania: “A transição precisa ser soberana. A tecnologia e a neo indústria devem estar no Brasil. Se deixarmos tudo para a iniciativa privada, não haverá soberania”. A fala atravessa a sala como um aviso, mas também como uma convocação: o país só terá autonomia se apostar numa Petrobrás pública e forte, capaz de operar novas fronteiras energéticas e de usar o petróleo atual para financiar o futuro.
Na manhã de sábado, 15 de novembro, as ruas de Belém são tomadas por uma marcha onde centenas de cartazes carregavam utopias. Petroleiros caminham lado a lado com ribeirinhos, povos indígenas, movimentos feministas, atingidos por barragens e uma juventude insatisfeita. Essa convivência, tensa e necessária, revela que o futuro não será obra de um único setor. No meio do trajeto da Marcha da Justiça Climática, o MAB segura uma faixa que diz: “Energia é direito, não mercadoria”. A frase atravessa o cortejo, encontrando ressonância entre os jalecos laranja. É como se, pela primeira vez em muito tempo, a energia pudesse ser pensada como bem comum e não como commodity.
Mas, enquanto a cidade fervilhava com discursos sobre um “futuro verde”, os petroleiros traziam na bagagem uma pergunta incômoda – e, por isso mesmo, essencial: quem define o que é verde? Porque há uma transição energética que se anuncia radiante, limpa, inclusiva. Mas em Belém, onde o sol reflete nos igarapés como uma navalha líquida, esse vocabulário de boas intenções às vezes parece mais uma névoa que encobre interesses. A chamada transição “inclusiva”, se mal conduzida, pode abrir as portas para corporações estrangeiras que chegam com a promessa de salvar o planeta e, na prática, levam consigo a energia, o lucro e o emprego que deveriam permanecer no território que os gera. Uma inclusão que inclui tudo – menos o povo.
Os documentos que dirigentes da FUP carregavam em pastas falavam uma língua mais dura e concreta. Dentre eles, estava a proposta para criação do Fundo Soberano da Margem Equatorial, encaminhada à Casa Civil. Sua missão: transformar parte da renda petroleira da região Norte e Nordeste em instrumento de soberania energética, desenvolvimento regional e preparação para o pós-petróleo. Não um fundo de especulação, mas um fundo de futuro – ancorado em políticas públicas, voltado para adaptação climática, proteção ambiental e fortalecimento das economias locais. Em síntese, usar o petróleo atual para financiar o Brasil que virá.
Seus proponentes defendem que ele ajude a reduzir dependências históricas, a apoiar transições justas, a proteger receitas cíclicas e a assegurar que as riquezas permaneçam no território. Não se trata de acumular para poucos, mas de planejar para todos. Em outras palavras, transformar o petróleo da Margem Equatorial em ponte – e não em sentença.
Transição com justiça
Enquanto isso, a outra face da transição já se mostra visível. Há relatos crescentes de violações trabalhistas em projetos tidos como sustentáveis: trabalhadores de eólicas em condições precárias, terceirizações abusivas em usinas solares, acidentes ocultados sob a propaganda verde. A cor do carbono muda; a lógica da exploração, não necessariamente. E cresce o risco de que conglomerados estrangeiros capturem grandes parcelas das novas fontes de energia – ventos, sol, biomassa – exportando a eletricidade, os lucros e o controle, deixando ao país apenas a poeira de empregos temporários.
O alerta mais duro veio do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), cujos pesquisadores têm acompanhado de perto a metamorfose do trabalho no setor energético. A cartilha apresentada na COP30 expõe o que muitos movimentos já sentiam na pele: por trás da promessa de uma transição limpa, há o risco de se consolidar um cenário de empregos mais frágeis, mais mal remunerados e mais desprotegidos. Segundo o estudo, parte expressiva das ocupações classificadas como “verdes” no Brasil se dá em condições marcadas pela informalidade, pela terceirização e pela instabilidade – um quadro que pode se agravar caso o país permita que corporações internacionais definam o ritmo, o modelo e os investimentos da transição. Para o DIEESE, não basta mudar a matriz; é preciso mudar também quem controla o processo e como os frutos dessa mudança são distribuídos. Caso contrário, a energia do futuro pode nascer com as desigualdades do passado.
Outro ponto sublinhado pelo DIEESE na cartilha é que a transição energética não é, por si só, sinônimo de desenvolvimento. Ela pode, se conduzida apenas por critérios de mercado, aprofundar assimetrias regionais e reproduzir o padrão de exploração já conhecido em outros ciclos econômicos, em que o território fornece a riqueza e recebe de volta apenas o desgaste. O documento reforça que o setor de óleo e gás ainda responde por parte significativa do emprego industrial formal no país, e que uma transição acelerada, sem planejamento público e sem mecanismos de proteção ao trabalhador, pode gerar um vácuo de ocupações de qualidade. “Se não houver políticas robustas de formação, requalificação e integração dos trabalhadores às novas cadeias de energia, a transição será injusta”, sintetiza o DIEESE. E injusta, como concordam movimentos e sindicatos, significa também insustentável – ambiental, social e democraticamente.
De acordo com Cloviomar Cararine, técnico do Instituto, a maioria dos trabalhadores acredita que o mundo deve, sim, reduzir o uso de fósseis – mas desde que existam garantias reais de reconversão produtiva, formação profissional e integração às novas cadeias energéticas. Para ele, “uma transição justa só será possível se o Brasil abandonar o improviso e construir, junto com sindicatos e comunidades, um plano de médio e longo prazo, capaz de preservar direitos, criar novas oportunidades e fortalecer o desenvolvimento nacional”.

É nesse terreno de incertezas que a Petrobrás aparece como peça central. Para os petroleiros, a estatal garante não só abastecimento, mas também autonomia tecnológica, capacidade de planejamento e proteção contra pressões externas. Sem ela, alertam, o Brasil corre o risco de perder o controle sobre sua matriz energética – ficando vulnerável a humores geopolíticos e interesses privados. A Petrobrás é, na leitura deles, a âncora que impede que a transição brasileira seja capturada pelo mercado internacional e pela lógica da dependência.
Quando a COP 30 entra em seus últimos dias, fica claro que Belém não ofereceu respostas simples. O que emergiu foi algo mais profundo: a necessidade de um pacto nacional que reconheça a Amazônia, os trabalhadores e os povos tradicionais como protagonistas. O futuro não será decidido apenas nos auditórios nem nas salas refrigeradas dos negociadores, mas sim com intensa participação popular. Será decidido na capacidade do país de unir o que o mercado historicamente separou: emprego, território, floresta e soberania.
Ao final, permanece a imagem da marcha atravessando a cidade. No asfalto quente, jalecos laranja e cocares caminham juntos. Essa cena – improvável e necessária – talvez seja a melhor tradução da COP 30 dos petroleiros. Uma travessia marcada por contradições, sim. Mas também pela coragem de enfrentá-las para que o Brasil encontre, enfim, um caminho onde justiça climática e justiça social sigam na mesma direção.
