A estratégia dos EUA com o discurso do narcotráfico como organização terrorista

Beto Palmeira, militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), analisa como o discurso do narcotráfico como terrorismo integra mais um capítulo da guerra híbrida na América Latina

Mulher chora sobre o corpo de uma vítima da chacina no Rio de Janeiro, em mais um episódio da política de extermínio que marca a guerra às drogas nas favelas (Tomas Silva/Agência Brasil)

Beto Palmeira – Militante do MPA

O retorno de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos reacende, com intensidade renovada, o ciclo de ofensivas imperialistas sobre a América Latina. O imperialismo, diferentemente das invasões clássicas ou dos golpes militares diretos, opera de maneira mais sofisticada. Ele combina manipulação midiática, pressão econômica, cooptação política e intervenção seletiva, uma forma moderna de dominação que os estrategistas chamam de “guerra híbrida”.

Essa nova forma de guerra expressa o esforço do capital financeiro e militar dos EUA para recuperar sua hegemonia num cenário internacional em transformação, marcado pelo avanço de polos emergentes como China, Rússia e Irã. A “guerra híbrida” não se dá apenas nos campos de batalha, mas sobretudo no campo das ideias, da economia e das instituições.

O discurso do narcotráfico e do terrorismo surge, então, como justificativa ideológica e jurídica para esse novo tipo de intervenção. Sob o pretexto de combater o “narco-terrorismo”, Washington busca legitimar sua presença militar e política no continente, reforçando sua capacidade de definir quem são os inimigos, quais territórios podem ser controlados e quais governos devem ser isolados.

A retórica do “combate às drogas” funciona, portanto, como uma máscara ideológica que oculta os verdadeiros objetivos: manter a América Latina subordinada à lógica do capital imperialista e impedir que os povos da região construam alternativas soberanas e socialistas

O Narcotráfico como Instrumento de Guerra Ideológica

Desde 2025, setores conservadores dos Estados Unidos  apoiados por aliados brasileiros vêm propondo que o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) sejam enquadrados como organizações terroristas internacionais. Essa proposta representa uma perigosa redefinição: o “crime organizado” a a ser tratado como “terrorismo”, o que cria base legal para ações militares externas, sanções econômicas e intervenções disfarçadas de cooperação internacional.

Juristas brasileiros e organizações populares alertam que esse enquadramento é inconstitucional, pois entrega a política de segurança interna à lógica e aos interesses de Washington. Mesmo sem aprovação formal no Congresso norte-americano, o discurso já vem sendo implementado na prática  tanto na mídia quanto em políticas estaduais servindo para legitimar ações repressivas e militarização crescente das periferias.

Essa apropriação do tema da segurança pública é uma das formas mais eficazes da guerra híbrida: ao transformar o “combate ao crime” em cruzada global, o imperialismo cria consenso interno e externo para a repressão. O verdadeiro alvo não são as facções, são processos políticos organizativos que apresentam qualquer possibilidade de constituir como forças contra hegemônicas na luta contra o imperialismo,   as organizações populares e movimentos sociais que lutam por soberania e justiça.

O Rio de Janeiro como laboratório da Guerra Híbrida

O caso do Rio de Janeiro é o exemplo mais claro de como a doutrina imperial é aplicada na prática. Em abril de 2025, o governo do Rio havia enviado um relatório sobre o Comando Vermelho diretamente ao governo dos EUA, evidenciando a integração do aparato policial local com as agências norte-americanas. Em 12 de maio de 2025, o governador Cláudio Castro, durante viagem a Nova York, propôs um acordo de cooperação entre o governo do Rio e a DEA (Drug Enforcement Administration), a agência antidrogas dos Estados Unidos. O objetivo declarado seria o “cruzamento de dados” e o “fortalecimento do combate ao tráfico”, mas, na realidade, o acordo representa a integração direta da política de segurança fluminense à lógica operacional da DEA, ou seja, à política de segurança dos EUA. 

Essa cooperação é, em si, um exemplo clássico de cooptação institucional, um dos pilares da guerra híbrida, onde um governo local subordina sua estratégia de segurança às diretrizes do imperialismo.

Para completar o quadro, em 23 de outubro de 2025, o senador Flávio Bolsonaro sugeriu publicamente que os Estados Unidos bombardeassem embarcações com drogas na Baía de Guanabara, numa evidente tentativa de estender a atuação militar norte-americana ao território brasileiro. Em 28 de outubro de 2025, uma megaoperação nos Complexos da Penha e do Alemão deixou mais de 130 mortos, sendo apresentada oficialmente como uma “guerra contra o narco-terrorismo”. Na mesma semana, a imprensa revelou o vínculo entre o governo estadual e autoridades norte-americanas, confirmando que o Rio de Janeiro se tornou laboratório da guerra híbrida aplicada à segurança interna: as favelas transformadas em zonas de guerra, os moradores pobres e negros tratados como inimigos, e a repressão legitimada como “cooperação internacional”.

A Venezuela como Alvo Central da Estratégia Imperial

Enquanto o Brasil serve como laboratório, a Venezuela permanece como alvo principal da ofensiva imperial. Trump vem acusando o presidente Nicolás Maduro de chefiar o suposto “Cartel de los Soles”, responsável pelo envio de cocaína aos Estados Unidos. A partir dessa narrativa, o Pentágono deslocou porta-aviões para o Caribe e chegou a ameaçar ataques a instalações venezuelanas.

Entretanto, relatórios independentes mostram que menos de 10% da cocaína que entra nos EUA passa pela Venezuela, enquanto a maioria vem do México e da América Central  regiões sob forte influência militar dos próprios norte-americanos. O objetivo não é combater o tráfico, mas enfraquecer governos soberanos, isolar aliados de China e Rússia e manter o continente sob domínio econômico e político.

A acusação de “narcoestado” é, portanto, uma ferramenta ideológica usada para justificar bloqueios, sanções e até golpes de Estado como já ocorreu em Honduras, Bolívia e Nicarágua. A “guerra às drogas” é, na verdade, uma guerra contra a soberania.

O Caso Colombiano e o Duplo Padrão do Imperialismo

A Colômbia exemplifica o cinismo da política norte-americana. Durante décadas, é a base militar dos EUA na América do Sul, com dezenas de instalações e acordos de cooperação. Quando o presidente Gustavo Petro tentou, ainda que timidamente, rever a militarização das drogas e buscar uma política mais autônoma, tornou-se alvo da máquina de difamação imperial.

Trump o acusou de ser “líder do narcotráfico”, sem qualquer prova. O padrão é conhecido: país submisso é parceiro; país soberano é terrorista. Essa retórica flexível serve para ajustar o inimigo conforme a conveniência do capital.

Controle Ideológico e Construção do Consenso

Nenhuma guerra híbrida é vitoriosa sem controle da consciência. O imperialismo domina não apenas pela força, mas pela fabricação do consenso. No Brasil, notícias falsas sobre supostas ligações de líderes progressistas com o tráfico como o caso de Hugo Carvajal circulam amplamente, mesmo quando desmentidas. O objetivo é claro: criminalizar o campo que apresenta em alguma medida algum nível de contradição com imperialismo e apresenta qualquer projeto alternativo de poder.

O conceito de “narcoterrorismo” não tem validade jurídica nem criminológica. É um instrumento político de dominação ideológica. Como ensinava Lênin, o imperialismo moderno combina violência econômica e hegemonia cultural para manter as massas desorganizadas e submissas.

Aceitar essa narrativa é abrir mão da soberania e transformar o povo em inimigo interno, permitindo que Washington determine quem vive e quem morre. O resultado é previsível: militarização das periferias, repressão aos movimentos e crescente controle político sobre os governos locais.

Soberania Nacional e Organização Popular

A resposta necessária não pode ser apenas diplomática deve ser política, organizativa e popular. Os governos democráticos precisam abrir debate junto ao povo dos riscos iminentes postos sob nossa soberania. O conjunto das organizações da classe trabalhadora e os povos latino-americanos precisam desmascarar a farsa do narcoterrorismo e reafirmar o caráter de classe da guerra híbrida. A defesa da soberania exige integração popular latino-americana, políticas de segurança baseadas em justiça social, investimento em educação, saúde, trabalho digno e reforma agrária, e não em extermínio. É preciso construir inteligência própria e poder popular, capazes de enfrentar as organizações criminosas que são parte da engrenagem capitalista e da dependência que o sustenta. 

O Imperialismo em nova roupagem

O imperialismo norte-americano muda o discurso, mas não a essência. Sob o disfarce do “combate às drogas”, avança a militarização do continente, a criminalização das favelas e o controle sobre governos e recursos estratégicos. Como Lênin já analisava, o capitalismo em sua fase imperialista precisa expandir-se constantemente, dominar territórios e impedir o surgimento de qualquer projeto autônomo. O “narcoterrorismo” é apenas a roupagem atual dessa velha lógica.

Resistir a essa ofensiva é tarefa anti-imperialista e revolucionária. É defender o direito dos povos latino-americanos de construir seu próprio destino, livre da tutela estrangeira, em direção a uma nova ordem mundial multipolar e socialista.

Obs:  Ao fechar esse material hoje 01 de novembro leio que o governo da Argentina mobiliza tropas para fronteira brasileira para combater os narcoterrorismo, e junto com governo do paraguai irá classificar CV e PCC como terroristas. Ou seja, há uma combinação de ações orquestradas pelo EUA junto a esses países que hoje estão sob subordinação direta aos EUA. 

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