Memórias: “O chão de fábrica foi uma escola”, aponta Marcinho

Márcio Gonzaga Cardoso, mais conhecido como Marcinho, trabalhou 37 anos da Refinaria de Paulínia (Replan) antes de se aposentar, em 2019; atualmente na oposição, participou da diretoria do sindicato na histórica greve dos petroleiros de 1995

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Em 1995, após a greve, Marcinho teve que prestar depoimento na Polícia Federal e sofreu ameaça de prisão

Por Guilherme Weimann

Afinal, qual a definição de petroleiro? Em uma busca rápida na internet, diversos dicionários restringem o termo ao adjetivo – relativo a petróleo – ou ao navio responsável pelo transporte de cargas – navio petroleiro. No Glossário da Petrobrás, por exemplo, o termo nem sequer existe.

Mas onde está o sujeito – petroleiro – nessa história toda?

“A própria definição no dicionário de petroleiro se você for ver é linda. É revolucionária. [O petroleiro] faz o petróleo como uma arma”, aponta o trabalhador aposentado da Refinaria de Paulínia (Replan), Márcio Gonzaga Cardoso, mais conhecido como Marcinho.

E, de fato, virando a página do Google, encontram-se algumas definições bastante curiosas sobre o termo. Michaelis: “Ativista adepto de atitudes radicais; extremista, petrolista”. Infopédia: “O que incendeia com petróleo; petrolista; terrorista”. E, por fim, no Dicionário Online de Sinônimos: “anarquista, carbonário, comunicar, incendiário”.

Mas, independentemente das designações alheias, nada melhor do que ouvir um trabalhador de uma empresa pública de petróleo, ou seja, um petroleiro, sobre o que caracteriza esse sujeito: “Ser petroleiro é estar na defesa dos interesses coletivos, estar na defesa de uma empresa pública, de uma empresa que é importantíssima para o desenvolvimento do país, é saber que o seu trabalho só se realiza coletivamente. O chão de fábrica ensina isso pra gente. Petroleiro é coletivo, é agente coletivo”.

E, justamente por essa convicção, Marcinho faz questão de frisar a importância de se construir a história coletiva da categoria: “A história não é feita pela somatória de todos nós, é mais do que isso. A memória não é um pouquinho da memória do Márcio e da memória de outros companheiros. Não, é algo mais. A força motriz do processo histórico é a classe trabalhadora, essa é a força da mudança. A memória não deve ser vista só do ponto de vista antropológico, só do homem individual, como muitas vezes é feito. Não, ela tem que ser pega no todo, no conjunto. O que é ser petroleiro? É esse conjunto, essa força conjunta de unidade. Petroleiro e petroleira”.

Apesar disso, e talvez a contragosto do próprio entrevistado, é impossível não ressaltar a importância do Marcinho para a categoria petroleira e, por isso mesmo, recordar quais foram os caminhos que os levaram até à refinaria.  

Filho de classe média

Márcio Gonzaga Cardoso nasceu no dia 2 de outubro de 1963, em Campinas, no interior de São Paulo: “Eu sou filho do que podemos chamar de classe média. A minha mãe é química de formação, trabalhou no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), funcionária pública. E meu pai era autônomo, trabalhou muitos anos como corretor de imóveis. Meu pai ainda é vivo e minha mãe já é falecida”.

E, por essa origem, sua família não esperava que se tornasse operário: “Quando eu entrei na refinaria, foi um choque para minha família, que não estava acostumada com um filho indo para um chão de fábrica, trabalhando em local perigoso. Então foi um choque para os meus pais”.

Mas sua formação em colégio técnico foi um dos incentivadores para ‘frustrar’ a expectativa dos pais: “Eu fiz colégio técnico em química, no COTICAP, que hoje se chama ETECAP. Era Colégio Técnico Industrial Conselheiro Antônio Prado. Os colégios técnicos eram para servir às indústrias, né? Aquela política que existia na época do regime militar… E a Rhodia foi uma das que mais bancou o COTICAP, pra ter uma formação de mão de obra para ela mesma. Por isso, muitos técnicos saíam de lá para a Rhodia”.

Petroleiro

E foi assim que, após um estágio de seis meses em uma indústria do ramo químico, na cidade de Vinhedo, que Marcinho decidiu prestar o concurso da Petrobrás, onde ingressou no dia 25 de julho de 1983: “Lembro do dia em que eu entrei. Fiquei muito animado, feliz, mas ao mesmo tempo com um friozinho na barriga. Porque eu já tinha passado seis meses no chão de fábrica. Eu já sabia que era um local que tinha uma certa periculosidade, né? Então foi um misto de muita alegria e um friozinho na barriga”.

Além disso, o momento não era nada favorável aos trabalhadores na Petrobrás. Isso porque, cerca de 15 dias antes, os petroleiros da Replan, em Paulínia, e da Refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, haviam realizado a primeira greve nacional da categoria: “Foi uma greve muito importante, ainda sob o regime militar, que foi fortemente reprimida. Por isso, era um ambiente muito carregado, muito pesado. Embora não tenha sido o sentimento geral, a gente percebeu alguns companheiros com um olhar meio estranho de ‘ah, esse pessoal aí está entrando no lugar de outros companheiros que tinham lutado’, o que era muito pesado”.

Devido à histórica greve de 1983, a Petrobrás demitiu 349 trabalhadores. Além disso, a ditadura colocou o sindicato sob intervenção, com a cassação de toda a diretoria. Foi nesse momento que os petroleiros criaram, como alternativa, a Associação Beneficente Cultural dos Petroleiros (ABCP), que num primeiro momento servia para dar suporte financeiro aos petroleiros demitidos, mas, posteriormente, também cumpriu um papel de organização da categoria.

Sindicalista

“Eu era muito pouco politizado, apesar de no início dos anos 80 haver uma efervescência estudantil. Os estudantes já falavam novamente, em questão da ditadura, de democratizar o sistema. Pouco tempo antes, a formação de novos partidos foi permitida, o que marca o fim do AI-5, em 1978. Mas eu me envolvia muito pouco. Então toda minha politização começou dentro da refinaria e do chão de fábrica. O chão de fábrica foi a minha escola, o chão de fábrica me ensinou o que é a revolução. A Petrobrás foi uma enorme escola em termos de conhecimento do que é a realidade, do que é a vida, do que é o trabalho, do que é a exploração”, admite Marcinho.

Mas, além do próprio chão de fábrica, Marcinho começa a participar de um movimento sindical que ressurge na Replan. “Quando a categoria se reorganiza e retoma o sindicato, alguns anos depois [da intervenção da ditadura], a ABCP acaba funcionando de forma mais discreta, como talvez seja hoje. Mas o que acontece? A partir da segunda metade dos anos 80, o nosso movimento sindical da Replan começa a ganhar força novamente”.

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Carteirinha de associado do Sindipetro-SP

Foi então que, entre o fim da década de 80 e começo de 90, Marcinho, junto com outros companheiros, organiza uma chapa de oposição à direção da ABCP: “Parte da direção do sindicato começa a discordar politicamente, sobretudo os companheiros que eram da destilação, que era meu setor. E então a gente organiza uma chapa de oposição à ABCP. O sindicato apoia uma chapa para a ABCP e nós apoiamos uma outra. E nós vencemos. Foi uma vitória muito importante e eu acho que a categoria ganhou muito com isso”.

Esse processo, segundo ele próprio, foi essencial para a elevação do seu nível de consciência política: “Uma coisa é você ser trabalhador, estar lá, mas outra coisa é você estar no sindicato ou em uma organização coletiva. A sua visão aumenta. É uma transformação. E quando eu falo que o chão de fábrica foi uma escola, eu quero dizer também da minha experiência sindical”.

E, da ABCP, foi um pulo para entrar efetivamente na direção do Sindicato dos Petroleiros de Campinas. Concomitantemente a esse processo, de entrada no movimento sindical, Marcinho se torna estudante de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Grevista

Foi na direção do Sindipetro que Marcinho vivenciou a histórica greve de 1995, considerada uma das mais emblemáticas da categoria: “Os governos do Fernando Henrique Cardoso significaram um grande ataque aos trabalhadores e um grande ataque à Petrobras como empresa pública. Então, na greve de 95, apesar de todas as dificuldades, eu acho que nós mostramos nossa indignação e nossa resistência àquele processo brutal”.

Marcinho durante mobilização da greve de 1995Assembleia durante a greve de 1995, na Replan

Apesar de ter sido realizada após a redemocratização, os mecanismos de repressão foram tão ou mais duros do que os utilizados durante a greve de 1983, realizada em plena ditadura militar: “Enfrentamos tanques do Exército, ocupação, além de uma multa terrível. Você vê, já não teve mais aquela questão da diretoria ser cassada, porque não existia mais o regime militar e o Ministério do Trabalho para fazer isso, mas tinha o TST [Tribunal Superior do Trabalho] que, por exemplo, criou uma multa que inviabilizou totalmente o sindicato”.

E, assim como na greve de 1983, houve diversas demissões e, além disso, os diretores sindicais foram ameaçados de prisão: “Todos nós, companheiros daquela direção, fomos para a Polícia Federal e tivemos que prestar esclarecimentos. Podíamos pegar de seis meses a três anos de prisão daquilo que éramos acusados. Teve uma forte repressão. Então eu acho que foi um momento muito importante, que marcou”.

Oposição

Apesar de toda a atuação no Sindipetro de Campinas ao longo da década de 90, hegemonizado pela Articulação Sindical (um ramo sindical do Partido dos Trabalhadores), as divergências políticas acabaram se tornando inconciliáveis no início dos anos 2000: “A ideia era formar um único sindicato, com os cinco sindicatos de petroleiros do estado de São Paulo. Foi um processo muito demorado, e eu mesmo oscilei, às vezes eu achava que era importante, às vezes achava que não. Cubatão foi o primeiro a sair fora do processo, posteriormente já em uma fase adiantada de unificação foi São José dos Campos”.

“Eu entendia em alguns momentos que a unificação era importante porque a gente tem uma tradição aqui na Replan, a meu ver, de maior combatividade que a dos companheiros de São Paulo, que eram mais novos, e dos companheiros de Mauá. Não estou desvalorizando esses companheiros, quero deixar bem claro. Mas no processo de discussão, eu vi que as coisas não estavam caminhando bem e, aliado a isso, o PT começou a ter viabilidade eleitoral”, explica Marcinho.

Maricnho
Marcinha durante assembleia na Replan

Em 2000, o PT conquistou diversas prefeituras, incluindo a de São Paulo, com a Marta Suplicy, e a de Campinas, com o Toninho. “Foi aí que tivemos um problema muito sério na nossa diretoria, porque boa parte acaba entrando na prefeitura sem uma discussão com a categoria, o que eu achei gravíssimo.  E são companheiros que eu gosto. Não estou aqui querendo fazer pouco deles. São companheiros importantes, mas que tiveram uma atitude totalmente errada para mim. E isso acabou sendo a gota d’água. Foi um rompimento político, mas não foi um rompimento da luta”.

A partir disso, Marcinho passou a organizar a oposição sindical ao Sindicato Unificado dos Petroleiros do Estado de São Paulo (Sindipetro-SP): “Tivemos nesse período três chapas de oposição. Nenhuma foi vitoriosa. Infelizmente nenhuma. Eu acho que na última eleição nós tivemos algo em torno de 30% dos votos na Replan. Mas deve ter tido em torno de 20% no geral, somando São Paulo e Mauá, até mesmo porque nós não conseguimos fazer uma oposição com representantes tão organizados em todas as bases”.

Marxista

“Eu sou marxista até hoje ou pelo menos acho que sou”, afirma Marcinho, que completa: “Marx estuda profundamente como se dá o processo de acumulação e exploração, e o quão cruel é a exploração capitalista. E também dá indícios importantíssimos para a transformação em direção a uma nova sociedade. Aquilo que nós chamamos de materialismo histórico, que é um estudo teórico, científico. Marxismo é uma ciência. Marx criou, na verdade, uma ciência. E, como toda ciência, está aí para ser comprovada, e aprimorada. E eu acredito ainda hoje que nós podemos, sim, construir uma sociedade alternativa ao que nós vivemos hoje”.

Entretanto, apesar de valorizar o marxismo enquanto ciência, Marcinho não acredita que a sua utilização deva ser restrita às universidades: “Existe um marxismo mais acadêmico, que não pensa na transformação do mundo. É um marxismo crítico para entender as classes sociais e tudo mais, mas não pensa muito na transformação do mundo. Mas eu, como Marx disse, acredito que o mundo até hoje foi interpretado, mas precisamos agora transformá-lo. Essa transformação que me faz marxista. Sou marxista porque eu acredito nessa transformação, não como algo utópico, mas uma transformação concreta”.

E foi justamente como petroleiro, sujeito, dentro da refinaria, que transformou, dentro de um corpo coletivo, a realidade ao seu entorno: “O que eu carrego de lá [da refinaria] é o meu otimismo com a transformação social. Porque até hoje eu acredito na transformação social e acredito que a humanidade pode superar o capitalismo”. 

Há cinco anos, Marcinho milita no Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). 

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