Previdência não é mercadoria para ficar em prateleira de banco

Ex-ministro da Previdência nos governos Lula e Dilma, Carlos Eduardo Gabas, de 53 anos, é um dos maiores especialistas do Brasil em previdência pública e atualmente utiliza esse conhecimento adquirido ao longo de mais de 30 anos para realizar debates mostrando como é cruel – termo que gosta de utilizar – a proposta de reforma da Previdência do governo Bolsonaro.

Gabas conversou com a reportagem do Jornal Petroleiros antes de um debate que iria realizar na sede do Sindicado dos Engenheiros de São Paulo. “É o quarto evento que participo hoje”, contou, sem perder a disposição e o bom humor. Para não acumular mais números à atribulada agenda do ex-ministro, a entrevista ocorreu conjuntamente com os Jornalistas Livres, e foi transmitida ao vivo pela rede social.

Na conversa, Gabas analisou mitos, como o de que a Previdência vai quebrar, que é deficitária, debateu a proposta do modelo chileno de capitalização individual e alternativas para garantir aposentadorias dignas. A seguridade social não é um produto para ser vendido na prateleira de um banco, é um sistema de proteção social da sociedade e precisamos debater fórmulas para garantir o bem-estar da população e não retirar ainda mais direitos como fizeram Temer e quer fazer Bolsonaro, afirma o ex-mininstro.

Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista concedida a Norian Segatto, do Jornal Petroleiros, e Emiliano Rodriguez, do Jornalistas Livres. A íntegra estará disponível em breve no canal TV Petroleiros.

 

Previdência não vai quebrar

Em 1998, FHC tentou impor, por meio da emenda 20, a idade mínima para a aposentadoria e perdeu a votação na Câmara. Aí ele criou o fator previdência que tunga até 42% do salário de quem vai se aposentar. Tentar impor uma idade mínima para aposentadoria em país desigual como o Brasil é uma crueldade, tem muita gente que começa a trabalhar muito cedo, com 16 anos, com o instituto da idade mínima, essa pessoa vai ter de trabalhar praticamente 50 anos para se aposentar, e quem teve oportunidade de estudar, fazer pós-graduação, especialização, entrar no mercado de trabalho com 30 anos, por exemplo, vai trabalhar menos e se aposentar com uma renda melhor, ou seja, é uma regra que penaliza a camada mais pobre, que precisa começar a trabalhar mais cedo.

Não podemos olhar para a previdência e dizer precisa fazer reforma senão vai quebrar, que o sistema não é sustentável. Não é verdade, porque senão a gente fica com a lógica só da despesa. As pessoas precisam entender que não houve descontrole na despesa da previdência, o crescimento é estável, na ordem de 3%, 3,5% ao ano, o que está oscilando é a receita, a arrecadação. No período do FHC já tinha um déficit que todo mundo assustava, por isso ele conseguiu passar a reforma. Isso foi em 1998, em 2005, 2006, essa mesma previdência, esse mesmo modelo solidário [quem está na ativa financia os pagamentos dos aposentados] começou a dar superávit. E não teve nenhuma mágica, o que tivemos foi o crescimento econômico do país, com inclusão de mais pessoas no mercado de trabalho. Entre 2006 e 2015 foram criados 20 milhões de empregos. Quase dois terços da arrecadação da previdência são sobre a folha de salários, então, se você aumenta a massa salarial você aumenta a arrecadação.

 

Impacto da reforma trabalhista de Temer

A reforma institucionalizou o bico, precarizou as relações de trabalho, instituiu o contrato intermitente, que não tem contribuição porque a pessoa não consegue ter regularidade no trabalho para somar renda para ter uma contribuição. Mais cruel que isso, o Temer atribuiu a responsabilidade desse recolhimento ao trabalhador, então se ele não consegue atingir um salário mínimo no mês, ele tem que complementar. A reforma trabalhista por si só põe em risco o sistema previdenciário porque trabalha com a lógica da informalidade, da precarização do emprego, e, portanto da diminuição da massa salarial.

 

Carteira verde e amarela

Essa carteira verde e amarela é a maior enganação que vai acontecer para o trabalhador. Meu primeiro emprego formal foi aos 18 anos em um banco e quando fui assinar o contrato estava lá um termo de opção pelo FGTS, mas não era optativo, todos eram obrigados a assinar o termo, isso acontecia porque, para acabar com a regra de estabilidade no emprego após 10 anos, o regime militar instituiu o Fundo de Garantia; de lá pra cá nunca mais houve vaga no modelo anterior. O governo atual quer instituir uma carteira de trabalho “opcional”, em que não há direitos trabalhistas nem previdenciários, nenhum direito social. É claro que ao instituir isso, as empresas só vão oferecer vaga na carteira verde e amarela porque não têm custo para elas. Essa carteira não pode passar, porque ela rasga cláusulas pétreas da Constituição.

 

Seguridade social

A previdência não está quebrada e nem vai quebrar. O sistema de seguridade engloba a Previdência, a assistência e a saúde. Assistência universal e gratuita, saúde, universal e gratuita e Previdência universal e contributiva. A arrecadação para esse sistema de proteção social se baseia nas contribuições dos empresários, dos trabalhadores, uma contribuição sobre o faturamento e a contribuição social sobre o lucro líquido, a CSLL, essas são as principais fontes de financiamento. A Constituição instituiu que essa arrecadação é destinada exclusivamente para a seguridade, mas o governo Fernando Henrique institui o que hoje se chama DRU [Desvinculação das Receitas da União], que permitia retirar até 20% da arrecadação da Previdência para outras despesas. Quando o governo Lula assumiu começou-se a tentar acabar com a DRU, mas era um tema difícil porque todos os governadores usavam esse mecanismo como muleta orçamentária, então o governo começou a tirar a incidência da arrecadação sobre a Educação e a Saúde, mas não se avançou na Previdência porque ela passou a ter superávit. Chegou a acumular no regime urbano mais de R$ 30 bilhões de superávit. Quando Temer assumiu, ele aumentou a desvinculação para 30%. Se a Previdência estava quebrada, como dizem, como é que se tira mais dinheiro dela? Temer fez ainda pior, mandou uma PEC [287] retirando direitos de trabalhadores e, ao mesmo tempo, enviou uma medida provisória criando um sistema de refinanciamento de dívida com perdão de grandes empresas, que chegou a R$ 62 bilhões. Fez isso em vez de atacar o problema da sonegação, que chega a R$ 500 bilhões, das renúncias fiscais e a redução da atividade econômica do país, que gerou 20 milhões de desempregados.

 

Projeto do governo

A proposta que está sendo veiculada não estabelece um valor para as aposentadorias, o governo Bolsonaro quer abandonar o modelo de proteção social, que é o regime de solidariedade, utilizado na maioria dos países do mundo, para um regime de capitalização individual, que acaba com a contribuição do empresário, acaba com a contribuição do governo, fica apenas a do trabalhador, no percentual de 10%. Esse dinheiro vai para uma poupança individual que vai para um banco, vira um produto, não um sistema de proteção social. Esse modelo existe no Chile, sabe o que aconteceu: desproteção, aumento da miséria e apenas 40% dos trabalhadores no Chile conseguem se aposentar e mais da metade desses 40% recebe meio salário mínimo. É isso que nós queremos para o Brasil? Isso tem impactos também na saúde e na assistência. O Temer já começou a fazer isso, cortando benefícios, cortando o Bolsa Família, por isso o Brasil voltou para o mapa da fome, porque houve um crescimento expressivo de miseráveis.

 

Tempo de contribuição

Atualmente, não existe idade mínima para aposentadoria, o homem se aposenta com 35 anos de contribuição ou 65 anos de idade, um ou outro; o que o governo quer fazer é acabar com a aposentadoria por tempo de contribuição, homens terão de ter 65 anos de idade e mulheres 62 anos, o tempo de contribuição vai influenciar no cálculo da aposentadoria. Essas regras vão dificultar muito a aposentadoria, O Dieese calculou que 80% das pessoas que se aposentaram em 2017 não conseguiriam se aposentar se essas regras estivessem em vigor.

Esse governo não quer resolver o problema da sociedade. Nos governos Lula e Dilma fizemos dois fórum de debate sobre a Previdência porque precisamos discutir esse modelo de proteção social, não podemos mais ficar tendo na folha de salários a principal fonte de financiamento, porque o mercado está mudando.

 

Privilégios

A maioria das aposentadorias do Regime Geral não atinge o teto previdenciário, se somar todos os benefícios a média gira em torno de R$ 1.300,00, isso é salário de privilegiado? Temos de pensar nos salários do judiciário, do Ministério Público, de algumas categorias que não respeitam o teto. Queremos regras para ampliar a proteção do trabalhador, não para restringir, como quer o projeto do atual governo. A Previdência não é problema, ela é parte da solução, qualquer país civilizado precisa ter um sistema de proteção social que garanta o bem-estar para a população.

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