Após comissão interna classificar como “desaconselháveis futuros contratos” com Forbes & Manhattan, Petrobrás lhe vende refinaria SIX, no Paraná, por US$ 33 milhões – valor menor do que o lucro da unidade em 2020
Por Caio de Freitas Paes, da Agência Pública
Em setembro de 2012, o banco canadense Forbes & Manhattan — operador das mineradoras Belo Sun e Potássio do Brasil, conhecido por investidores em geral pela sigla F&M — ofereceu uma “oportunidade” para a Petrobrás: a criação de uma empresa para ofertar ao mundo o uso da PetroSIX, uma técnica desenvolvida originalmente pela petrolífera em uma refinaria em São Mateus do Sul, Paraná.
“Conduziremos uma diligência de quatro meses nas operações, trabalharemos lado a lado com a equipe da unidade e, ao fim, realizaremos uma proposta final à Petrobrás de aquisição [da refinaria] ou criação de uma joint venture [sociedade empresarial]”, dizia o grupo na apresentação da proposta feita há mais de nove anos. Mas a “oportunidade” tinha um lado oculto, como a própria estatal constatou pouco depois em uma apuração própria.
Ainda em 2012, uma comissão interna de apuração da Petrobrás investigou um possível vazamento de informações sigilosas para a F&M ligadas ao “projeto de internacionalização” da PetroSIX. Ao fim dos trabalhos, a comissão avaliou “como desaconselháveis futuros contratos com a empresa F&M e qualquer empresa a ela vinculada direta ou indiretamente”.
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Praticamente dez anos se passaram até a Petrobrás ignorar sua própria recomendação e fechar negócio com o banco canadense. Sob a presidência do general da reserva do Exército Joaquim Silva e Luna, a petrolífera assinou em 2021 um contrato para a “venda da Unidade de Industrialização do Xisto (SIX)”, a refinaria onde foi criada a PetroSIX, para o banco do bilionário Stan Bharti — um homem com conexões com a cúpula do governo Bolsonaro, como revelou a Agência Pública na reportagem: “Como o lobby de um militar da reserva favoreceu mineradoras canadenses na Amazônia”.
O acordo foi assinado em 11 de novembro passado e define, entre outros temas, o pagamento de US$ 33 milhões pela refinaria e a futura “celebração de acordo de arrendamento” do parque tecnológico da SIX. Ou seja, a Petrobrás pagará pelo uso dos laboratórios desenvolvidos do zero por ela mesma desde os anos 1970.
“Não tivemos acesso ao contrato de venda, então não sabemos como os laboratórios e o resto do parque produtivo foram quantificados pela Petrobrás”, diz Mário Dalzot, secretário jurídico da Federação Única dos Petroleiros lotado nessa refinaria, no sul do Paraná.
A Pública perguntou à Petrobrás sobre as recomendações de sua antiga comissão contra o grupo F&M. Via Lei de Acesso à Informação, a companhia disse que “informações adicionais sobre o tema não podem ser disponibilizadas”, “tendo em vista a necessidade de preservar o sigilo das suas informações empresariais, sob pena de comprometer a sua atuação no mercado, descortinando estratégias e diretrizes que só dizem respeito à Petrobrás”.
Por meio de nota divulgada por sua assessoria, a petrolífera afirma que a conclusão da venda “pode durar até 15 meses” e que ela “continuará operando a SIX através de um contrato de prestação de serviços por um período transitório, enquanto o comprador estrutura seus processos e monta suas equipes”.
“Todos os envolvidos se beneficiarão”
O primeiro contato do grupo canadense com a PetroSIX se deu em 2007, quando a Petrobrás tentava emplacar sua tecnologia na meca do petróleo no mundo.
No dia 23 de fevereiro daquele ano, a petrolífera anunciou a assinatura de um compromisso com o Ministério de Minas e Recursos Naturais da Jordânia para uma possível aplicação da técnica PetroSIX no país do Oriente Médio. A tecnologia envolve métodos de mineração e refino de combustível de modo original, afinal, foi inteiramente desenvolvida pela companhia na refinaria no Paraná ao longo das últimas décadas. A aproximação do governo da Jordânia e da petrolífera contou com o apoio do Forbes & Manhattan, como relatado pela Petrobrás à época.
Por um lado, a parceria com a Jordânia não avançou; por outro, o grupo canadense manteve-se interessado na tecnologia da Petrobrás. Anos depois, em setembro de 2012, o banco de investimentos de risco de Stan Bharti aproximou-se com uma proposta de parceria.
A Pública teve acesso ao material apresentado por Forbes & Manhattan à Petrobrás. Em 12 slides, o banco canadense elenca as vantagens de uma eventual parceria para si, para a petrolífera e para a população de São Mateus do Sul e proximidades da refinaria SIX no Paraná.
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O grupo estabelece também os termos de aceite para a Petrobrás — um compromisso de confidencialidade da proposta e exclusividade para o grupo canadense — e mostra suas credenciais na mineração. Em um slide intitulado “Entrega de excelentes lucros”, Forbes & Manhattan elenca algumas das empresas operadas por ele à época, em 2012 — como a mineradora de ouro Belo Sun, em conflito desde então com indígenas e assentados da reforma agrária na Volta Grande do Xingu, Pará.
“Todos os envolvidos se beneficiarão com o novo acordo”, diz o grupo canadense, que defendia ainda que, a partir da nova companhia, a Petrobrás teria “maior flexibilidade para comercializar a técnica PetroSIX ao redor do globo”. A aplicação inicial, segundo o Forbes & Manhattan, se daria no “projeto de refino de xisto para produção de petróleo na Jordânia”.
Em resumo, o banco de risco de Stan Bharti “contribuiria com investimentos e expertise em mercado de capitais e mineração”, enquanto a Petrobrás ofereceria “seu conhecimento da operação PetroSIX, os mercados consumidores existentes no Brasil e suas relações com governos”.
No Sul do Brasil, “repúdio à conduta” do grupo Forbes & Manhattan
O antigo portal de economia do site IG foi um dos poucos a noticiar o desembarque — “com tudo” — do grupo Forbes & Manhattan no Brasil em 2011, um ano antes da sua sugestão de parceria com a Petrobrás.
O portal ouviu o então vice-presidente do banco canadense aqui no país, Hélio Botelho Diniz, que dizia que “a oportunidade em petróleo no Brasil é muito grande”. O representante do Forbes & Manhattan abordava a produção da refinaria no Paraná, dizendo que “os barris da PetroSIX são disputados a tapa pelas indústrias do sul”. Ainda segundo a matéria, Hélio Diniz teria dito também: “estamos planejando um passo grande”.
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À Pública, Diniz confirmou que ainda cuida das operações do grupo no Brasil, listando inclusive a recente aquisição da SIX. “Estamos aguardando os trâmites legais para a gente assumir a refinaria”, afirmou.
O executivo definiu ainda a filosofia de seu trabalho junto ao grupo canadense — “o que a gente faz é valorizar os empreendimentos com a diminuição do risco” — e descreveu suas tarefas rotineiras. “Temos equipes dedicadas, pois qualquer investidor só ‘coloca’ dinheiro onde conhece bem e tem confiança, então a gente [equipe técnica do F&M] vai e interage, participa de encontros, conversas [com investidores]. Temos muitas atividades nessa área”, disse Hélio Diniz.
Desde 2011, o grupo canadense tenta extrair milhões de toneladas de xisto do litoral paranaense por meio de uma de suas subsidiárias, a mineradora Irati Energia. Essa companhia teria direitos minerários sobre uma área de mais de 3 mil km2 entre a costa do Paraná e a de Santa Catarina, muito próxima à SIX.
Mas a Irati Energia enfrenta críticas de ambientalistas e outros setores por conta de seu projeto. A técnica que seria empregada pela mineradora canadense, chamada de fracking, contribui para a emissão em larga escala de gases do efeito estufa na atmosfera — um dos motivos da resistência de municípios próximos às áreas de exploração da Irati.
Uma das filiais da mineradora está registrada no município de Papanduva (SC), local tomado por pedidos de mineração da indústria petrolífera. Em abril de 2019, o prefeito Luiz Henrique Saliba (Progressistas) e o vice Jaime Iankoski (PSD) acusaram tanto o Forbes & Manhattan quanto a Irati Energia de atuarem de modo “meramente especulativo” no município desde 2013, “sem prestar os devidos esclarecimentos”.
Em uma nota consultada pela Pública, os dois políticos afirmam: “Cumpre também o repúdio à conduta adotada pelas empresas [F&M e Irati Energia] […] à “forma como obtiveram os licenciamentos dos órgãos públicos”, porque “não fizeram previamente a exposição detalhada à população diretamente afetada”, e à “possibilidade da instalação forçada” do projeto, “inclusive através da possível judicialização para tomada” de terras em Papanduva.
A reportagem procurou a prefeitura do município catarinense, para obter mais detalhes sobre o caso, mas não houve retorno.
“O xisto é mais uma ‘pedrinha’ no tabuleiro”
A venda da SIX ao Forbes & Manhattan não se deu sem controvérsias. A decisão não foi unânime dentro do conselho administrativo da Petrobrás, segundo o relato de Rosângela Buzanelli, representante dos petroleiros e trabalhadores da companhia no conselho. À Pública, a conselheira avaliou a venda da refinaria em São Mateus do Sul como “um absurdo”.
“Desde a posse de Pedro Parente [como presidente da Petrobrás, em 2016], mudou a visão e a missão da Petrobrás: hoje, o que se quer é o menor custo possível de produção total da companhia, só para maximizar lucros e dividendos para os acionistas”, diz Rosângela.
A conselheira explica que, para tal, a petrolífera mudou seu eixo estratégico de atuação, concentrando-se em campos de exploração do pré-sal apenas entre Rio de Janeiro e São Paulo. Gradativamente, a atividade de refinarias em outros pontos do Brasil diminuiu, “forçando a importação de combustíveis e derivados, algo que fortalece as importadoras”, segundo Rosângela.
Ainda de acordo com a conselheira, o fortalecimento de importadoras privadas abriu uma brecha para contestações da política de preços de combustíveis da Petrobrás no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Tanto para Rosângela quanto para outros especialistas ouvidos pela Pública, os questionamentos do setor privado no Cade influenciaram as recentes vendas de refinarias, inclusive a SIX.
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Após comissão interna classificar como “desaconselháveis futuros contratos” com Forbes & Manhattan, Petrobrás lhe vende refinaria SIX, no Paraná, por US$ 33 milhões
À Pública, a companhia afirma que “a venda da SIX faz parte do compromisso firmado pela Petrobrás com o Cade para a abertura do setor de refino no Brasil” e que todo o processo “é auditado por órgãos de fiscalização, como o TCU”.
“Vemos a negociação da SIX como mais uma faceta do processo de destruição da Petrobrás”, afirma Ricardo Maranhão, diretor jurídico da Associação dos Engenheiros da petrolífera. A associação foi uma das que se posicionaram contra a venda da refinaria no Paraná, avaliando-a como uma “decisão ideológica” da diretoria da petrolífera.
“Por ter uma parte industrial e outra baseada em processos de mineração, a SIX mantém um laboratório complexo, fruto de anos de pesquisas que desembocaram na patente da técnica PetroSix — desenvolvida em conexão com universidades em um processo científico único”, disse o dirigente, que trabalhou por mais de 25 anos na Petrobrás. “O xisto é mais uma ‘pedrinha’ no tabuleiro”, afirma Maranhão.
Outras organizações vão além. A Central Única dos Trabalhadores e a Federação Única dos Petroleiros alegam que a Petrobrás estaria pagando para desfazer-se da SIX. Segundo as organizações, o montante total da venda — R$ 178 milhões, na cotação do dia da assinatura do contrato – seria menor que o lucro da refinaria em 2020, como já relatado pela Rede Brasil Atual.
À Pública, a petrolífera disse que “em todos os processos de venda de ativos a Petrobrás estabelece uma faixa de valor que norteia a transação. Essa faixa reflete as perspectivas futuras de geração de resultado do ativo, não podendo ser comparada com resultados contábeis que refletem o passado”.