Representando a classe trabalhadora durante o século XVIII, os sans-culottes foram peças fundamentais para a Revolução Francesa por formarem uma camada popular que era unida na luta por igualdade
Por Humberto Caselli, operador na Refinaria de Paulínia
Nos últimos anos, assistimos à ascensão da extrema-direita no Brasil, resultado da junção do neoliberalismo com o conservadorismo a la Tea Party, cujo combustível foi o antipetismo estimulado pela mídia e pelas elites que a financiam.
Neste novo momento da Política brasileira, é cada vez mais difícil estabelecer um diálogo envolvendo ideais de liberdade, democracia e justiça social que realmente representem mudanças positivas para a sociedade; dá-se preferência à discussão de temas periféricos de forma fundamentalista e preconceituosa, colocando em xeque todo um conjunto de progressos políticos, econômicos e sociais adquiridos pela sociedade brasileira não somente durante a era Lula, mas também desde o fim do regime militar. Frente ao risco de cada vez mais vivermos numa sociedade desigual e que não garante a todos o direito à vida digna, faz-se necessário que o povo reivindique os espaços de fala disponíveis: redes sociais, televisão, rádio, escolas, universidades, inclusive nas conversas cotidianas.
Tal ação representa impor uma barreira contra a desinformação das fake news e da pregação do fundamentalismo social (composto por um misto de religiosidade e ideologia política, ambas cegas às reais necessidades da sociedade), determinando quem pode ter direito às benesses do capitalismo e quem não pode. No nosso contexto, como pessoas trabalhadoras do Sistema Petrobrás, não podemos nos ausentar do debate político sobre os rumos do país, sob pena de sofrer na nossa pele as sanções que o neoliberalismo (cristalizado na figura de Paulo Guedes) e o bolsonarismo impõem.
Não é a primeira vez em que o proletariado é alijado do processo político. Durante o século XVIII, a Europa viu a ascensão da classe burguesa, assim chamada devido aos seus locais de morada (os burgos, ou cidades), pessoas cuja riqueza vinha das transações mercantis e da evolução dos ofícios e manufaturas para o que, um século depois, levaria à Revolução Industrial.
No entanto, como os burgueses não eram descendentes de nobres, não possuíam força política a priori – eles a adquiriram por causa das grandes riquezas que amealhavam, o que os levava a construir e influenciar as decisões das cidades. Neste período, houve a ascensão da religião calvinista, que pregava o status divino do trabalho, dando à burguesia a bênção para que se sentissem privilegiados – em contraste com à condenação da usura e do lucro por parte da Igreja Católica.
Em seguida, o surgimento de uma nova forma de pensamento filosófico, o Iluminismo, retirou a Igreja do centro da vida das pessoas e trouxe a razão como determinante das ações humanas. Não mais a pessoa necessitava de uma instância divina para definir a própria existência, mas a evidência de que ela existe reside no simples fato de que ela é capaz de pensar – assim dizia René Descartes.
Immanuel Kant trouxe o conceito da ação moral como sendo um conjunto de ações a serem realizadas por simplesmente serem certas, e não por medo de punição ou recompensa. Estas e outras ideias filosóficas implantaram na sociedade um sentimento de revolta contra o poder absolutista da monarquia, da nobreza e do clero, que atribuíam a si mesmos a autoridade divina e a imutabilidade do poder que possuíam.
Aqueles que não fossem de família real, nobres ou da Igreja entenderam, graças à filosofia iluminista, que possuíam os mesmos direitos de vida que as classes mais favorecidas, e isto deixou evidente a desigualdade em que viviam – e foi esta desigualdade o estopim do qual os burgueses se aproveitaram para que tudo culminasse na Revolução Francesa em 1789, na Revolução Dezembrista na Rússia de 1825, e em movimentos de independência na Grécia e nos EUA, dentre outros acontecimentos.
No Brasil do século XXI, vivemos um momento similar à França do século XVIII. Temos um Estado cheio de parasitas e puxa-sacos, cujo poder é instituído por leis feitas para perpetuar a desigualdade social, e que se alimenta do fundamentalismo religioso e da deseducação da sociedade (e inclusive liderados por um imbecil que se acha o Rei-Sol); uma burguesia liberal que já financia a produção de mídia e conduz a economia mas quer ainda mais poder para conquistar mais riquezas (vide as tentativas de forçar Luciano Huck como candidato a presidente, por exemplo); e uma classe de pessoas proletárias que está totalmente à parte das decisões políticas, tanto porque acham que não diz respeito a elas, quanto porque são minorias que historicamente sofrem preconceito e são alijadas das decisões políticas (trabalhadores, autônomos, LGBTQIA+, afrodescendentes, mulheres, pobres, moradores de rua etc). Estes são comparáveis aos sans-culottes, que estavam na base da sociedade francesa pré-Revolução e, assim como fizeram a diferença naquele momento, são os que fariam a diferença caso assumissem a responsabilidade de forçar as mudanças que favorecessem a ascensão social e a garantia dos direitos básicos à vida e dignidade humanas.
Não nos enganemos, meus caros; não somos burgueses. Em termos marxistas, somos todos proletários porque não somos donos de meios de produção – no máximo fazemos uma cervejinha artesanal ou temos pequenas empresas, mas não temos recursos para fazer lobby ou influenciar políticos – não de forma individual. Não somos diferentes de qualquer outra classe proletária, então, temos a urgente necessidade de assumir os espaços de fala disponíveis para fazer valer nossos direitos à vida e à dignidade, inclusive para todas as pessoas que vivem conosco na mesma sociedade; e cobrar dos nossos governantes eleitos que isto aconteça. Nós vivemos em uma sociedade cada vez mais dividida, e, como diria Jesus Cristo, “todo reino dividido contra si mesmo será arruinado, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá” (Mateus 12:25).
É possível mudar este destino, se nos unirmos de forma que, como diria Rousseau, encontremos “uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (ROUSSEAU, 1978, p.32). Quando nos dispomos, como sociedade, a proteger a nós mesmos e a nossos bens (ou direitos), ganhamos uma força que nos protege das imposições da estupidez de quem está no poder, pendendo a balança da igualdade para o nosso lado.
Nos últimos 20 anos, tivemos acesso a coisas que jamais nossos pais sonharam: viajar de avião, comprar casa, carro, ter bons empregos. Estamos perdendo estas coisas porque a letargia nos impede de lutar; o medo e a desunião da sociedade é utilizado pelos donos do poder para manter a desigualdade social, e só pode ser rompida por iniciativa de nós, os “sans-culottes”, assim como na França de 1789. Rogo para que possamos chegar a este ponto de organização.