O que o governo está fazendo com as pessoas é crime

Foto: Diego Nigro_Reuters

Por Norian Segatto

A afirmação é da doutora em Química formada pela USP e pesquisadora da Fundacentro de São Paulo, Arline Arcuri. Segundo ela, as pessoas que se prontificaram a fazer o trabalho voluntário de limpeza das praias não receberam treinamento nem equipamentos de proteção, o que pode causar problemas de imediatos de intoxicação e, em longo prazo, desenvolver doenças mais graves. Confira os principais trechos nesta conversa com Norian Segatto e acesse o vídeo para assistir à entrevista completa realizada na sede da Fundacentro.

Jornal Petroleiros – Como a senhora vê a questão das manchas de óleo que surgiram no Nordeste e esse trabalho voluntário que está sendo feito sem qualquer proteção?

Arline Arcuri – Esse trabalho voluntário é louvável, mas é muito preocupante. Louvável do ponto de vista das pessoas que se preocupam em colaborar para limpar aquela catástrofe toda, são praticamente heróis, mas não podia ter sido assim. Se o governo federal não tivesse destruído várias comissões, como aquela de prontidão [Plano Nacional de Contingência], que já tinha tudo mapeado como fazer, certamente não haveria necessidade desse trabalho voluntário, ou se ele fosse chamado devido à extensão do acidente, as pessoas seriam orientadas. Não dá para mexer em produto como petróleo, que uma mistura de produtos químicos bastante complexos, alguns cancerígenos. Não tem produto do petróleo que não seja tóxico, alguns provocam problemas renais, hepáticos, não dá para mexer com esses produtos do jeito que a gente viu; algumas pessoas com luva, mas sem nenhuma proteção respiratória, manchas volatizando ou decompondo produtos químicos perigosos, aquilo passa pela pele, a gente viu trabalho voluntário absolutamente sem proteção, crianças completamente sujas com petróleo, isso é um crime.

JP – Dezenas de pessoas inclusive foram internadas. Quais são as principais consequências dessa exposição em curto e longo prazos.­

Arline Arcuri – Eu não consegui ainda nenhum resultado da composição química daqueles produtos, então vou dizer o que avalio que tenha acontecido. Todos os produtos derivados de petróleo que são voláteis, considerados solventes, são depressores do sistema nervoso central, significa que dão tontura, mal-estar, dor de cabeça, enjôo, tudo isso é consequência de uma intoxicação aguda. Isso não significa que essas pessoas não vão apresentar ao longo do tempo doenças crônicas, não é por que foi um ou dois dias de trabalho que elas não podem ter tido uma lesão mais profunda no organismo e vão desenvolver no futuro lesões mais sérias mesmo que não estejam mais expostos.

Foto: Felipe Brasil / Fotos Públicas

JP – Não existe limite de exposição para esses produtos?

Arline Arcuri – Para o benzeno não existe limite de exposição.  Uma exposição aguda nesses poucos dias que ficaram trabalhando poderá ter provocado, em algumas pessoas, por exemplo, uma lesão de medula óssea, não vou dizer para todo mundo, porque a resposta do organismo tem um componente individual muito grande, tem gente que pode ter ficado mergulhado no petróleo e não aconteceu nada e tem gente que com algumas horas de contato pode ficar intoxicado e de forma grave, então não dá para responder genericamente.

A resposta do organismo à toxicidade dos produtos depende se a pessoa está bem alimentada, se está bem de saúde, se não teve algum problema de saúde anterior que pode ser agravado com o produto químico, então não dá para prever quantos vão ficar doentes, que doenças vão aparecer. Mas é um risco muito grande, é um crime o que foi feito com essas pessoas – não terem sido orientadas, não ter uma prontidão imediata do governo, ficar com essas besteiras de achar que é agressão de outro país, isso é um absurdo, acredito que isso vai acontecer em outras situações por conta desse desmonte da organização social.

JP – Tem um plano de contingência nacional que não foi acionado…

Arline Arcuri – O grupo foi totalmente desmantelado. Está tudo no papel, mas o grupo que efetivamente tem conhecimento daquilo foi desmontado.

JP – O ICMbio foi desmantelado.

Arline Arcuri – Ibama desmantelado, nós passamos por uma situação muito ruim.

 

JP – Em uma situação ideal, o que o governo deveria ter feito com esses voluntários?

Foto Teresa Maia

Arline Arcuri – Se no primeiro momento tivesse um trabalho para identificar de onde vem as manchas, tentar eliminar boa parte delas ainda antes de chegar à praia, mesmo que não evitasse totalmente, poderia ter diminuído muito a quantidade que chegou. Quando vai chamar voluntários, tem que ter treinamento mínimo, eles têm que estar equipados com EPIs apropriados. Quando se vê imagens de acidentes semelhantes em países do primeiro-mundo, o pessoal parece um astronauta fazendo limpeza na praia, com o corpo inteiro protegido. Aqui às vezes nem luva têm, tinha de treinar, equipar, mostrar qual é o risco, de maneira que a limpeza fosse feita sem comprometer a saúde das pessoas.

JP – Contaminou o mar, o solo e as pessoas.

Arline Arcuri – E ainda falar que o mar está limpo só porque algumas praias já foram limpas, não dá para dizer isso sem fazer uma análise química da água, porque tem muito produto derivado de petróleo, que embora seja pouco solúvel em água, não é insolúvel totalmente, então ele pode estar contendo ainda uma boa quantidade de produtos tóxicos dissolvidos na água do mar.

Foto: Leo Malafaia _AFP