Entrevista com Rose Nogueira e Antônio Funari Filho

O jeito frágil esconde uma guerreira, uma mulher que aos 23 anos encarou o mais temido assassino da ditadura, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, para proteger seu filho recém nascido. As memórias da prisão e da tortura ainda causam emoção na jornalista Rose Nogueira e em quem ouve seu relato. “Quando falo sobre isso ainda sinto no corpo a sensação da tortura”, diz, ao lembrar que era obrigada a ficar nua perante os torturadores, que se incomodavam por ela ainda ter leite. Rose foi presa no dia 4 de novembro de 1969, o mesmo da morte de Carlos Marighella, que ela conheceu durante a militância na ALN (Ação Libertadora Nacional). Presa por nove meses, passava os dias imaginando quando – e se – voltaria a rever seu filho.
Após sair da prisão, continuou sua militância, se tornou presidente do grupo Tortura Nunca Mais e é uma radical defensora dos direitos humanos. “É um absurdo se comemorar a ditadura militar como deseja esse governo”, ataca.
Rose recebeu a reportagem do Jornal Petroleiros na sede da Cúria Metropolitana, ao seu lado estava outro histórico militante dos direitos humanos, Antônio Funari Filho, ex-líder estudantil, também preso político, advogado e presidente da Comissão de Justiça e Paz.
Clique aqui para assistir à entrevista pela TV Petroleiros. Leia, a seguir, alguns trechos da conversa com o jornalista Norian Segatto.
Relembrar o golpe
Rose – A população tomou como um insulto a tentativa de comemorar mortes e torturas. Na ditadura, a tortura era uma política de estado e as pessoas foram às ruas ontem (dia 31 de março) protestar pacificamente. A imprensa mundial, a ONU, entidades de classe como a OAB condenaram essa iniciativa do governo.
Funari – O golpe foi dado contra as reformas de base, que, de certa maneira, serviam, para aperfeiçoar o capitalismo. O próprio Bolsonaro disse que não seria comemoração, mas rememoração, e é importante rememorar para saber o que foi a ditadura.
Rose – Rememorar para que nunca mais aconteça.
A prisão
Rose – Eu emprestava minha casa para reuniões clandestinas, eu não participava de ações, até mesmo porque estava grávida, fazia o apoio logístico e foi nessas reuniões que conheci o Carlos Marighela. Fui presa pelo esquadrão da morte, que era comandado pelo delegado Fleury. Meu filho, Carlos, tinha 34 dias de vida, eles chegaram à minha casa à noite, algemaram meu marido e disseram que iriam levar “o moleque” para o juizado de menores. Aí veio meu instinto de mãe, encarei o temido Fleury e disse que não iria levar meu bebê. Não existe nada mais forte do que a maternidade. Ele bufava, ameaçava usar de violência. Resisti e disse que só iria presa se meu filho ficasse com minha família. Passei a noite toda em casa amarrada no sofá e só podia levantar quando meu filho chorava. Deixei no dia seguinte ele na casa da minha sogra, não tem dor maior do que deixar um filho.
Funari – Eu não peguei em armas contra a ditadura, mas ela pegou em armas contra mim. Em abril de 1964 eu fui preso pelo “crime” de fazer alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire. Fiquei 15 dias preso, depois fui preso outra vez, quando era presidente da UEE. Virei réu, enquanto respondia o processo me formei advogado, passei a advogar pelos presos políticos e, em janeiro de 1969, fui preso novamente, acusado de passar um bilhete para um dos presos. Fui condenado a quatro anos.
Memórias do cárcere
Rose – Tinha 23 anos quando fui presa, era magrinha, sempre fui, era bonitinha, aí começaram a me chamar de Miss Brasil, vocês podem imaginar o que é uma moça ser “Miss Brasil” do Esquadrão da Morte. Um dos torturadores, o pior deles, chamava Tralli [João Carlos Tralli, investigador de polícia], se incomodava com meu leite, eu cheirava a leite azedo, sangrava, ainda consequência do parto, eles riam, me batiam e ele dizia que o leite incomodava o desejo dele. Me devolveram para carceragem para tomar uma injeção para cortar o leite. Diziam que iriam levar meu filho lá, que iriam queimá-lo, era terrorismo psicológico sempre, pensava que se tentassem fazer algo com o menino eu iria me jogar pela janela [Rose se emociona ao relatar]. Fiquei sem leite, mais de um mês sem tomar banho, tive uma infecção puerperal muito séria e nunca mais pude ter filho, essa é uma sequela perpétua da tortura. Marca de tortura não passa, agora mesmo, quando estou conversando, me dá vontade de proteger os seios [faz o gesto cruzando os braços].
Compromisso com a vida
Rose – Na prisão a gente desenvolve um compromisso humano com a vida, a vidas as plantas, dos animais, e, principalmente, dos humanos, é impossível não ser comprometida com a vida quando você conhece o que foi uma ditadura.
Funari – Esse relato da prisão é um exemplo de como a ditadura solta suas bestas, o que de pior as pessoas têm por dentro, o ódio entre as pessoas. Não há limites para os absurdos que ocorrem quando você instala uma ditadura. O presidente tem que ser presidente de todos os brasileiros e pregar a paz, não o ódio.
Continuamos na luta após tanto tempo não por vingança, mas para construir o país de nossos sonhos. Mais do que o discurso, as pessoas aprendem muito pelo exemplo, é esse exemplo que queremos dar para as futuras gerações para construir uma nação.
Rose – O amor à vida, o amor à democracia, isso nos faz continuar na luta.