Na ditadura e na pandemia há muita dor, mas também muitos dispostos a lutar

Autor de vídeo sobre Regina Duarte que viralizou nas redes, músico Don Ernesto aponta como um ex-exilado se sentiu ao ver a secretária de Cultura minimizar a ação de torturadores e fala sobre as mensagens de apoio que recebeu

Por Luiz Carvalho

No dia 8 de maio, Ernesto José de Carvalho, 52, músico e apresentador de TV, mais conhecido como Don Ernesto, viralizou nas redes ao publicar um vídeo que classifica como um desabafo. No material de quase sete minutos, em tom emocionado, ele direciona suas palavras à secretaria Especial de Cultura do governo Jair Bolsonaro (sem partido), Regina Duarte.

Com quase 300 mil visualizações, o material traz os sentimentos de alguém que viveu uma realidade ignorada pela ex-atriz da TV Globo que, em entrevista à CNN, minimizou os torturadores da ditadura militar.

“Saiba que você me atingiu duplamente, primeiro, porque a ditadura militar que você saudou assassinou meu pai, prendeu minha mãe, assassinou e sumiu com corpos de dois tios meus, nos fez morar em outros países por quase 10 anos na condição de refugiados”, apontou o músico no vídeo.

Em uma conversa com o Sindipetro-SP, Don Ernesto, que tantas vezes esteve sobre o carro de som dos sindicatos em atos organizados na capital paulista, fala sobre sua história, da reação e apoio que recebeu após o vídeo e classifica ‘Apesar de você’, de Chico Buarque, como uma espécie de mantra para o atual período que, talvez um dia, seja difícil de acreditar e explicar às gerações futuras

Confira abaixo a entrevista.

No vídeo em que você desabafa contra a ministra da Cultura, Regina Duarte, você conta como ela lhe atingiu na entrevista à CNN. Qual a sua relação com a luta contra a ditadura militar?
Don Ernesto –
Eu tive uma infância no exílio. Meu pai era militante do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, na década de 1960, e militante do PCdoB (Partido Comunista do Brasil). Com o golpe de 1964, passou a fazer parte de grupos que defendiam a luta armada como resistência à ditadura.

Ele foi morto em abril de 1971 pela polícia política e a partir daí nos exilamos. Primeiro moramos no Chile, depois Argentina e Portugal. Quando eu saí eu tinha três anos e quando retornamos eu tinha 10 anos, logo depois da anistia.

E como a música começa a fazer parte da sua vida?
Don Ernesto –
A música sempre teve um papel muito importante para mim nessa perspectiva de estar morando fora do país, na condição de refugiado, de não conhecer minha terra de origem. Era um momento de muita apreensão, de grande saudade, de, no meu caso, não conhecer o Brasil. Ouvíamos o que chegava do Chico, do Caetano, a referência era a música.

Como foi esse retorno? Você fala que quem recebeu você foi a Ruth Escobar.
Don Ernesto –
Nós saímos em 1971 e voltamos em 1979. Quando chegamos ainda havia um clima de muita apreensão, a Ruth Escobar tinha relação de apoio aos exilados e fez questão de nos receber, dar certa visibilidade para nossa chegada, até porque, minha não sabíamos o que iríamos encontrar. Minha mãe acabou sendo detida quando chegamos para um depoimento de cinco horas.  A Ruth nos recebeu no aeroporto e nos ajudou na readaptação.

Primeiro nós ficamos em Diadema, na casa da minha avó materna, minha mãe logo em seguida começou a trabalhar, fui para a escola e acompanhamos a redemocratização do país.

Que país você encontrou?
Don Ernesto – O país estava destruído, basta ver a dívida externa que herdamos. E quando esses defensores da ditadura falam em segurança, falam que ‘naquela época não tínhamos tanto crime’, primeiro é bom lembrar que não tínhamos o número de habitantes que temos hoje, segundo, o acesso à comunicação era diferente, seja por questão tecnológica, seja por conta da censura, já que havia controle sobre os meios de comunicação. Há vários casos de corrupção de militares que na época foram abafados e que hoje são públicos.

“E quando esses defensores da ditadura falam em segurança, falam que ‘naquela época não tínhamos tanto crime’, primeiro é bom lembrar que não tínhamos o número de habitantes que temos hoje, segundo, o acesso à comunicação era diferente, seja por questão tecnológica, seja por conta da censura.”

Don Ernesto

E como você se percebeu músico?
Don Ernesto –
A música era muito importante, porque além de uma referência ao Brasil, também dava uma carga emocional grande, porque o que o Chico Buarque cantava tinha muita relação com o que vivíamos. Eu, então, resolvi estudar música.

Quando estive na França, em 1990, assisti um show dele no país e pensei, ‘é isso que eu quero fazer da minha vida. Estreei nos palcos em 1997 e comecei a amadurecer como artista quando passei a produzir espetáculos que tivessem como temática o resgate da história dos Anos de Chumbo. O primeiro que montei foi o ‘Canções da Resistência’, de 2001, com releitura de músicas censuradas e que compuseram a trilha da minha família e de outros refugiados.

A partir daí eu passei e me identificar com a arte como uma expressão da voz e da cultura do povo.

Como alguém que viveu a ditadura, o que mais chocou na entrevista da Regina Durante?
Don Ernesto – Primeiro, o destempero como secretária e a falta de um projeto de cultura para o país, para a situação que a gente vive com a pandemia. Na verdade, a postura geral foi estarrecedora, porque, além de não ter ideia, se identifica com uma política fascista, que é o que o Bolsonaro representa.

A postura diante da pandemia é de promoção do eugenismo, de descartar os pobres, de acreditar que os idosos também devem morrer.

Do ponto de vista pessoal, foi o desprezo dela pela vida, não só quando cita que as pessoas mortas na ditadura, sob tortura, eram algo que acontecia mesmo e que deveríamos olhar para frente, mas também olhando para o agora. No dia em que atingimos 11 mil mortos, o chefe dela estava andando de jet ski e só não fez o churrasco prometido porque as redes sociais criticaram profundamente. O desprezo dela pela vida humana me chocou muito.

A Regina Duarte é apenas uma das pontas de um governo que exalta e tem orgulho de torturadores. Vemos também algumas pessoas que vão às ruas, mesmo durante a pandemia, defender a ditadura e o fechamento de instituições que garantem o exercício democrático. Como vê isso?
Don Ernesto –
O grande responsável por isso é o Brasil não ter passado a limpo sua própria história. Muita gente não sabe o que foi a ditadura militar, não sabe o objetivo do golpe militar de 1964, porque se soubesse não teríamos tido outro golpe em cima da Dilma Rousseff. A presença desses reacionários na política não é de agora e não teriam espaço como têm e que foram adquirindo com o passar dos anos se conhecêssemos e tivéssemos discutido a nossa história.

Faltou responsabilizar a repressão política e policial, ao contrário do que fizeram outros países da América do Sul como Chile, Argentina e Paraguai, que condenaram e prenderam militares. Nesses países que fizeram isso se adquiriu a cultura de menosprezar regimes totalitários.

No Brasil, a Lei de Anistia, de 1979, permitiu que voltássemos, permitiu aos presos políticos saírem, os inquéritos militares serem zerados, mas também instalou uma impunidade em relação aos crimes dos torturadores, que não responderam pela torturas, violência contra a humanidade e para a qual não há anistia e nem prescrição.

Acredito também que os governos militares trabalharam no sentido de implementar uma ideologia, não era só repressão a quem não concordava, mas queriam implementar um projeto que acaba sendo voltado para uma subserviência aos americanos, que nos coloca numa posição de terceiro mundo e de subdesenvolvimento que bate continência para o imperialista.

Tanto que após a saída da Dilma, aceleraram a venda de nosso patrimônio, na reedição de um projeto implementado durante a ditadura. Naquela época, quando a Regina Duarte vira a namoradinha do Brasil, isso se deve a uma estratégia de criar ídolos fundamentalmente afinados com eles ideologicamente. Isso inclui a Jovem Guarda, influenciada pelo rockabilly, em detrimento a um movimento cultural com gente como os Novos Baianos, Ivan Lins, Martinho da Vila, Chico Buarque e outros. O projeto era político e cultural.

E o residual disso, o que ficou enraizado dentro da nossa sociedade, a gente vê nas culturas e valores atuais, que valorizam imensamente os produtos americanos. A mercantilização e entrega da saúde e educação, com privatizações, também não é algo recente, vêm daquela época.

“O grande responsável por isso é o Brasil não ter passado a limpo sua própria história. Muita gente não sabe o que foi a ditadura milita […] Faltou responsabilizar a repressão política e policial, ao contrário do que fizeram outros países da América do Sul como Chile, Argentina e Paraguai, que condenaram e prenderam militares.”

Don Ernesto

Qual canção que você usaria para definir o momento que vivemos?
Don Ernesto – De novo, ‘Apesar de você’, do Chico Buarque. Essa canção tem muito a ver com o momento, como tinha quando foi lançada, no final da década de 1960, início da década de 1970. ‘Apesar de você / Amanhã há de ser / Outro dia / Você vai pagar e é dobrado / Cada lágrima rolada / Nesse meu penar’.

O momento agora não é uma disputa eleitoral, a gente está vendo o que acontece no país. Antes da pandemia, já tínhamos um problema sério na perspectiva econômica e a questão econômica é fundamental, porque se não vai bem há aumento da pobreza, da desigualdade social, isso vai gerar violência e marginalização. A economia já vinha caindo aos pedaços, o PIB deu menos de 1% antes da pandemia enquanto o governo falavam em crescimento de 3%. Agora, fica mais claro o desprezo da vida humana por esses caras.

É muita gente chorando, muita gente agoniada, as pessoas estão enterrando seus mortos e familiares sem ter despedida. Vemos em Manaus pessoas morrendo na rua e na porta de hospital, imagina o médico tendo de escolher quem usará o respirador e, consequentemente, quem viverá.

Eu penso com muito pessimismo. De alguma forma, essas coisas irão passar, não tem como calcular o tamanho da tragédia, acho que vai piorar. Esse meu vídeo foi um desabafo, mas, ao mesmo tempo, me deu uma ponta de esperança porque houve muitas manifestações e eu recebi milhares de mensagens de todo canto do Brasil, de fora, da Holanda, Irlanda, Portugal, França, Itália, Alemanha. Recebo até hoje e isso mostra que, além de termos pessoas que são sensíveis aos valores humanos, também temos muitos indignados. Provavelmente, após essa pandemia, teremos uma transformação na sociedade muito grande.

Você me atingiu Regina Duarte, duplamente!

Posted by Don Ernesto José De Carvalho on Friday, May 8, 2020

 

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