Silvio José Marques liderou os petroleiros na histórica greve de 1995, foi diretor comercial da companhia de abastecimento de saneamento de Campinas e atualmente milita no Partido dos Trabalhadores (PT)
Por Guilherme Weimann
Existe um ditado no Sindipetro, especificamente na regional de Campinas, de que o doutor Pedro cura de unha encravada à dor de corno. Doutor Pedro, no caso, é uma generosa dose do conhaque Pedro Domecq – bebida destilada que se tornou marca registrada dos petroleiros, assim como, mais recentemente, o uniforme (farda) laranja.
Cada gole, é inegável, carrega dentro de si um pouco de nostalgia, outro tanto de galhardia e uma pitada de autenticidade: “Esta é a bebida dos petroleiros”. Mas, além disso, o culto ao poder milagroso do doutor Pedro esconde, muitas vezes, a incapacidade dos homens se expressarem.
O conceito de masculinidade, difundido há séculos, é o de que homens não podem demonstrar fraqueza e, muito menos, compartilhar seus sentimentos. Essa norma social hegemônica cria, como efeito colateral, pessoas aprisionadas em seus próprios pensamentos, traumas e memórias – sem contar o que esse papel histórico e socialmente imposto causa às mulheres.
Mas como falar de memórias – e não da história propriamente dita – sem adentrar nas emoções? “Um projeto sobre memórias tem a capacidade de provocar as pessoas a falarem da alma, da sua verdade, do seu olhar, que às vezes não está tão necessariamente visível. Você está olhando, mas não está vendo. Então você tem surpresas muito boas, outras nem tão boas, que acabam abrindo feridas, mas é bom que a gente exercite essa capacidade de falar”, opina o petroleiro aposentado Silvio José Marques.
O projeto Memórias não pretende cumprir um papel terapêutico, mas provocar trabalhadores a construir e reconstruir memórias, que carregam em si um pouco da história coletiva, mas essencialmente pontos de vista e emoções: “A gente vai reformulando [a memória]. Você pega as pessoas para falar, as pessoas se dão conta que tem um histórico muito grande, mas ela não havia sido provocada a falar. Eu nunca fiz terapia, mas a terapia é um processo que você tem que reformular e repensar seu interior. Então talvez um dia eu tenha que fazer, é uma debilidade minha de não aceitar fazer. Mas enfim, acho que isso acaba sendo uma terapia. Sinto que isso aqui é uma terapia”.
Infância
Silvio José Marques nasceu no dia 17 de outubro de 1953, em Bebedouro, localizado próximo à cidade de Ribeirão Preto: “Eu me lembro de morar em uma vila muito bonita, com muitas árvores, um campo de futebol, sem movimento de carro, nem asfaltada ela era. E tinha um horto florestal no fundo da linha do trem. Lá a gente ia brincar, tinha um rio limpo, frutas”.
E era justamente nessa linha de trem, que passava ao fundo da sua casa, que trabalhava o seu pai: “Meu pai era ferroviário e tinha uma escala de trabalho desgastante, de muitas horas, diferente um pouco de hoje. E eu me lembro quando criança tendo que levar a comida para ele, tanto em um lugar como em outro da estação da Fepasa [Ferrovia Paulista]”.
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Quando Silvio tinha 12 anos, seu pai e sua mãe – que cuidava da casa – compraram um terreno afastado da cidade: “A gente jogava bola em um campinho de futebol muito próximo da minha casa, do lado do cemitério. A nossa diversão era jogar até escurecer. A hora que escurecia e a bola caia no cemitério, o problema era quem ia buscar”. Nesse bairro suburbano, Silvio morou com seus quatro irmãos [uma irmã e um irmão mais velhos e duas irmãs mais novas] até se mudar para Campinas.
Vida adulta
Com o passar dos anos – e da infância –, a cidade de Bebedouro, que atualmente possui cerca de 80 mil habitantes, começou a restringir os planos de Silvio: “A minha família, basicamente meus pais, sempre quis que eu prestasse concurso. Fosse para o Banco do Brasil, para a Caixa Econômica, para o Banespa… A Petrobrás não estava no meu radar, nem sabia muito bem como é que faria isso”.
Nessa época, Silvio começou a conciliar os estudos do colegial com alguns trabalhos: primeiro no Banco Itaú e, posteriormente, em uma loja de material de construção: “Saía muito tarde do trabalho e tinha dia que eu não tinha nem força pra ir pra aula. Ou até ia, mas acabava indo embora”.
Foi então que um amigo, que havia se mudado à cidade de Campinas para cumprir o serviço militar, despertou um interesse até então inexistente. “Ele me disse que, logo após sair do Exército, já havia entrado como segurança na Replan [Refinaria de Paulínia]. Fomos tomar uma cerveja e ele comentou sobre o concurso da Petrobrás: ‘Aproveita a data, eu te levo pra fazer a inscrição’. Vim pra Campinas com ele fiz a inscrição na própria Replan”.
Poucas semanas depois, retornou a Campinas, que fica a cerca de 300 quilômetros de Bebedouro, e foi um dos selecionados para trabalhar na maior refinaria do país: “Eu fiz a prova e passei. Fiz outra prova e passei. Aí fiz um curso de três meses de preparação no Colégio São José e fui um dos selecionados. Foi aí que entrei na Petrobrás”.
Petrobrás
Com 22 anos, no dia 8 de dezembro de 1975, Silvio foi admitido no setor de utilidades da Replan, que abarca a captação, adução e tratamento de água utilizada na unidade: “Eu aprendi a operar uma estação de tratamento de água. Eu não tinha noção do que era uma refinaria. Mas falei pra mim mesmo: ‘É tudo ou nada, não posso voltar pra casa agora, né?’. E eu me adaptei muito rápido”.
Mas se a adaptação à refinaria foi rápida, a ambientação em Campinas não foi fácil: “No começo, em Campinas, vindo de fora, você percebe que o campineiro é muito na dele, não é um povo acolhedor. Difícil arrumar amizade, não foi fácil não. Eu tinha uns amigos que eram da Petrobrás, mas quase todos casados ou mais velhos”.
Mesmo assim, insistiu: “Comecei a sair pra ver shows, músicas latinas, Tarancón, tinham vários grupos que eram dessa vertente. E a gente frequentava aí com esse povo, ouvia muito Caetano, essa vibe. Não curtia muito rock, nem Roberto Carlos. Ia com alguns amigos para essas pegadas. Mas ia muito sozinho também”.
Mas logo encontrou um lugar que parecia familiar, onde se sentiu em casa: “Meu pai sempre foi muito ligado ao sindicato, ele frequentava direto, tinha uma relação estreita. Eu fui aprender datilografia no sindicato. Eu fui assistir aos primeiros filmes no sindicato, que tinha uma sala de projeção. Pra mim, o sindicato era meio que uma extensão do trabalho do meu pai e eu achava legal, gostava de ir. Então foi natural a minha aproximação com o sindicato dos petroleiros”.
E essa aproximação foi crescente, assim como a unidade da categoria dentro da Replan: “Em 82, a mobilização já estava mais quente. A greve de 83, na verdade, começou a ser construída antes. Ela não estourou por estourar. Começou em 82, por aí, quando a gente já estava com esse espírito de fazer alguma coisa, de criar uma resistência dos trabalhadores petroleiros, diante da situação que nós estávamos vivendo. Quando chegou 83, que o governo ia assinar um decreto que abria a possibilidade de privatização, foi a gota d’água”.
Iniciada no dia 6 de julho de 1983, a greve durou seis dias, que realmente abalaram o mundo – pelo menos o dos petroleiros da Replan e da Refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia: “Minha demissão saiu no jornal. Mas eu não sei por que cargas d’água no segundo ou terceiro dia me ligaram e me tiraram dessa lista. Quem me ligou foi o Airton, que era chefe do meu setor: ‘Nós conseguimos tirar o seu nome’. E não me explicou direito como, mas eu voltei”.
Sindicato
Com o término da greve, o Sindicato dos Petroleiros de Campinas ficou sob intervenção da ditadura militar por alguns meses. Nesse período, Silvio participou do grupo que retomou o sindicato: “Ninguém tinha experiência. Todos eram dirigentes novos. É claro que nesse processo ainda tinham algumas pessoas, como a Esther e o Caravante, que davam uma assistência, mas eles não podiam ficar aqui o tempo todo porque tinham que tocar a vida, estavam demitidos, tinham que resolver uma série de outras situações deles”.
Concomitantemente à sua entrada no movimento sindical, Silvio estava terminando o curso de Sociologia na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas: “Às vezes eu pescava demais e comecei a ter dificuldade para tocar o curso por conta disso. Era turno de quatro grupos só [na refinaria], não era essa modalidade de cinco grupos, 33,3 horas, eram 42 horas, era mais pesado para você estudar”.
Mesmo assim, terminou o curso, e, mais do que isso, manteve-se no sindicato. E não demorou muito para se tornar presidente, no início dos anos 90, justamente o período de ascensão das ideias neoliberais. Com a entrada de Fernando Henrique Cardoso (FHC) na presidência, a privatização da Petrobrás passou a ser um risco iminente e a perda salarial e de direitos uma constante para os petroleiros.
Com isso, em 1995, a categoria decidiu entrar em greve: “Eu achava que a greve seria de no máximo 10 dias ou uma semana. Achei que em uma semana resolveria a situação. Mas não foi uma semana, foram 32 dias. A coisa foi piorando a cada dia. Não foi melhorando, foi piorando. Porque a gente começou a greve e aí ela foi aumentando, foi criando corpo, foi aumentando, e as unidades começaram a aderir. Nacionalmente, praticamente a categoria toda aderiu à greve de uma forma coesa e ela foi crescendo”.
Se na greve de 1983, em plena ditadura militar, não houve a intervenção direta das Forças Armadas, dessa vez, em 1995, em ‘pleno’ regime democrático, o Exército ocupou a Replan: “Tinham tanques pra todo lado, nas portarias, nos canteiros. Depois que acabou a greve, um soldado disse pra um petroleiro: ‘Pensei que ia ter que dar uns tiros em vocês, porque a gente foi municiado’. Tinha muita gente armada e municiada”.
Além disso, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) declarou a greve ilegal e o presidente FHC anunciou na televisão que só negociaria após o encerramento das paralisações: “Quando foi chegando próximo dos 27, 28 dias de greve, a gente precisava de alguma maneira achar uma saída. Foi aí que apareceu uma discussão com o [Eduardo] Suplicy, que era senador, com o Franco Montoro, que era governador de São Paulo, e com mais algumas pessoas. O [Luciano] Zica, que era parlamentar, começou a criar um documento de responsabilidade dessas pessoas em relação à retomada de uma negociação pós-greve. Basicamente foi um compromisso político. O documento era um compromisso político de que teríamos uma possibilidade da retomada de negociação, para resolver as pendências e tudo mais. Foi com essa leitura que a gente encerrou a greve”.
E a greve foi encerrada com multas milionárias, que praticamente inviabilizavam a atuação sindical dos petroleiros: “O primeiro cara que assumiu politicamente que iria levar adiante a anistia dos sindicatos era o presidente da câmara na época, Luís Eduardo Magalhães. Mas aí o cara morre, antes de passar a pauta à votação. Daí tivemos que ir até o pai dele, o então presidente do Senado Antônio Carlos Magalhães, o Toninho Malvadeza, como diziam. Ele abriu a reunião, lembro até hoje, dando o maior pito na gente: ‘Vocês são um bando de moleques, não podiam ter feito isso, vocês quase pararam esse país’. Deu o maior sermão na gente, lembro até do dedinho levantado dele. Mas no fim ele disse: ‘Se meu filho assumiu esse compromisso, eu também vou assumir. Nós vamos tocar em frente a anistia das entidades sindicais, dos trabalhadores não’. Mas, depois, ao longo dos meses, conseguimos reintegrar todo mundo que havia sido demitido”.
É comum escutar nos espaços do sindicato que nenhum petroleiro fica para trás. Por isso, Silvio considera que sua vida está dentro desse espaço – mais do que físico, simbólico: “Minha vida ficou, praticamente minha alma ficou aqui dentro e eu não quero levar ela embora daqui. Eu gosto daqui e sinto como se fosse minha segunda casa. Ser petroleiro é estar aqui, sentir que é parte desse processo. Sentir que as pessoas de alguma forma te respeitam, sentir que você respeita as pessoas. É uma convivência, uma relação de convivência muito leal, de muita gente. Pra mim, ser petroleiro é esse estado de vida que eu tenho”.
Atuação política
Outra frase bastante habitual na categoria é de que ‘uma vez petroleiro, sempre petroleiro’, mesmo após a aposentadoria que, no caso do Silvio, veio em 1997. Por isso, em 2000, quando Silvio assumiu o cargo de diretor comercial da Sanasa, a companhia estatal de abastecimento e saneamento de Campinas, muitas vezes seu espírito sindical falou mais alto.
Silvio recorda: “Nós estávamos trabalhando para levar água para uma região próxima ao Alphaville. Mas do lado do Alphaville [condomínio de alto padrão] tem o Jardim Miriam, tem o Parque dos Pomares, tem uma população pobre. E tinha que levar água para lá, aumentar a vazão de água para lá. Beleza, levamos a tubulação até a pista que era administrada pela Renovias. Dali, para atravessar a pista, tinha que fazer uma obra. Não podia quebrar a pista, tem que ser por baixo, fazer um tatuzinho. O cara foi cavando e já tinha atravessado praticamente tudo, já estava a praticamente dois metros do acostamento para chegar no ponto final, que a gente ia conectar com outro trecho para levar e abastecer toda a região. Só que começou a chover nessa época e deu afundamento em um pedaço da pista, e a Renovias parou a obra”.
Depois disso, foram vários meses de negociação até que decidiu partir para outra estratégia: “Aí um dia eu enchi o saco: ‘Eu vou passar essa porra na marra’. E fui lá no bairro e fiz uma reunião com o pessoal: ‘Olha, vocês querem essa água? Então vamos fazer o seguinte, tal dia eu vou trazer essas máquinas aqui, nós vamos fazer contra a decisão da Renovias, vocês topam peitar?’. E eles toparam”.
E ambas as partes cumpriram o acordo: “Cheguei lá com os tratores e o povo também foi chegando. Aí passou um carrinho da Renovias e dali a pouco outro carro, e outro, e chegou a Polícia Rodoviária. Aí começou uma muvuca. Aí o cara da Renovias: ‘Desce do trator!’. E eu: ‘Não desce porra nenhuma! Sobe no trator!’. Desce, sobe, desce. Ficou esse puxa-puxa, o cara querendo parar a obra e a gente querendo tocar. Chegou a imprensa, comecei a dar entrevista falando que era sacanagem da Renovias, que a população estava morrendo de sede. Depois de umas cinco horas os caras chegaram com um papel: ‘Isso aqui é um acordo, pode continuar, mas tem que tomar cuidado com isso e aquilo’. E aí concluímos a obra”.
O mesmo espírito Silvio leva para o Partido dos Trabalhadores (PT), no qual foi candidato a vereador de Campinas em duas ocasiões, em 2000 e em 2022, e hoje integra a coordenação municipal.
Vida
Diante dessas e de outras tantas históricas, que não cabem em algumas horas de um processo de escuta que não se pretende, mas que algumas vezes cumpre um papel terapêutico, Silvio se sente orgulhoso: “Me sinto revigorado quando penso no que eu fiz, quando penso no que meus amigos fizeram, o que nós fizemos juntos, e no que nós podemos modificar ainda. E isso ainda pode se transformar em um documento histórico para um futuro próximo, algum pesquisador pode se interessar em entender a dinâmica dessa categoria. Isso vai virar documento de pesquisa”.
Se os primeiros filmes que assistiu foi no sindicato que seu pai fazia parte, como ferroviário, hoje pode se orgulhar de ver o filme da sua própria vida sendo produzido e distribuído pelo sindicato que construiu e constrói, ao longo de vários anos: “Hollywood aqui somos nós. Nós estamos contando a nossa história. Entendeu?”.