Em entrevista exclusiva, Chico Malfitani explica os motivos que levaram as torcidas organizadas às ruas, pede por uma unidade da esquerda e lamenta a despolitização nas arquibancadas e dentro de campo: “para quem teve Sócrates, ter Neymar hoje é muito triste”
Por Guilherme Weimann
“O povo já está nas ruas”, pondera Chico Malfitani, 70 anos, um dos fundadores da Gaviões da Fiel. Para o jornalista e publicitário, o protesto realizado no último domingo, 31 de maio, ocorreu por necessidade da população que já se vê exposta diariamente aos riscos da Covid-19 para suprir as condições básicas de sobrevivência.
Foi na garagem do avô de Malfitani que a maior torcida organizada do país deu seus primeiros passos, em 1969, a partir da reunião de 12 amigos que decidiram constituir uma frente de oposição nas arquibancadas contra o então presidente do Corinthians, Wadih Helu, que também era deputado estadual pela Arena – partido pró-ditadura militar.
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Desde sua gestação, a Gaviões da Fiel se opôs ao autoritarismo, dentro e fora dos gramados. Atualmente, com cerca de 120 mil associados, a torcida reúne uma diversidade de pessoas que estão sendo impactadas diretamente pelo coronavírus. “A Gaviões é povo. E é o povo que está sofrendo na pele os efeitos da pandemia e da crise econômica”, explica Malfitani.
A diretoria da Gaviões informou que já faleceram 12 de seus membros vítimas da Covid-19. Esse foi um dos motivos que levou a torcida a se posicionar contra os protestos fascistas e o atual governo de Jair Bolsonaro (sem partido). “Juntou uma crise econômica, com uma crise política e uma crise sanitária. Eu vivi uma ditadura militar, mas nem naquela época existia uma situação como essa, de entrega do país”, avalia Malfitani.
Nós não fomos na [avenida] Paulista com palmeirenses, são-paulinos, santistas, todos juntos? O que nos separava é menor do que aquilo que nos une.
Com o entendimento da urgência de realizar um contraponto em relação a ascensão de movimentos antidemocráticos, a Gaviões passou por cima até mesmo das diferenças em relação a outras torcidas organizadas, que também compuseram o ato do último domingo. “Nós não fomos na [avenida] Paulista com palmeirenses, são-paulinos, santistas, todos juntos?”, indaga Malfitani, que completa: “o que nos separava é menor do que aquilo que nos une”.
O corintiano espera que isso também sirva de exemplo para os partidos políticos de esquerda. “Nós estamos achando ridículo essa divisão entre os partidos. Esquece a eleição, ela é só daqui dois anos. Vamos assegurar hoje a democracia. Agora nós temos que ver o que nos une, não o que nos separa”, opina Malfitani.
Em relação ao futebol, o jornalista aponta que a saudade é anterior à pandemia. “Eu lembro do Maracanã com a geral. Povão todo no estádio, com as bandeiras. Futebol moderno acabou com tudo isso. O reflexo da tristeza do futebol dentro do campo é o reflexo do futebol na arquibancada”, afirma Malfitani, que sentencia: “para quem teve Sócrates, ter Neymar hoje é muito triste. Dentro do campo e fora”.
Confira abaixo a entrevista completa:
Como ocorreu a organização do ato desse último domingo e qual foi o cálculo político para ir às ruas nesse momento de pandemia?
Na verdade, nós chegamos numa situação de dificuldade. O Corinthians é povo. A Gaviões é povo. E é o povo que está sofrendo na pele os efeitos da pandemia e da crise econômica. O governo não tem nenhum projeto para a área da saúde e nenhum projeto para a área da economia para minorar o sofrimento dos brasileiros. Então, o povo já está nas ruas. Já morreram 12 membros da Gaviões de Covid-19. Muita gente está na situação de sair às ruas para ter o que comer no dia seguinte.
E o presidente só falando em ditadura, em proteger os filhos. Chegou uma hora que tudo isso está explodindo, por muita indignação. Não podemos ir para as ruas? Mas o que a gente sabe fazer? O que a gente mais sabe fazer é, justamente, ir para as ruas. O país estava dormindo. Nós somos a maioria, somos 70% do país. E nós estávamos dormindo. Por isso, decidimos fazer alguma coisa.
Foi um grito de alerta para o país acordar. Se a gente não acordar, o caminho é uma ditadura, um buraco.
Nós tomamos todas as precauções. Eu estava de quarentena em casa, fui direto para a [avenida] Paulista. Coloquei a máscara, não toquei em ninguém. Mas alguma coisa precisava ser feita para o país. Foi um grito de alerta para o país acordar. Se a gente não acordar, o caminho é uma ditadura, um buraco. Um buraco econômico e na saúde pública. Fica como um alerta do que nós devemos fazer.
Não vamos partir para a violência, não tem nada disso. Nós estávamos lá em um número dez vezes maior [em comparação com o ato fascista]. Eles estão ficando cada vez menores, estão parecendo um circo. Algo totalmente pitoresco. Quanto mais isolado eles ficarem, melhor. Mas a gente tinha que retomar as ruas. Acabei de receber um vídeo com as torcidas do Paraná, todas unidas. Um vídeo espetacular, muita gente reunida em Curitiba. Então a coisa está se espalhando.
Além da Gaviões, foram para a avenida Paulista setores antifascistas das torcidas organizadas do São Paulo, Palmeiras e Santos. Como foi essa articulação e como você enxerga essa união das organizadas contra a ascensão de movimentos fascistas?
Não foi nada feito formalmente. Tem gente da Gaviões que tem relacionamento com gente de outras torcidas. Já havia tido uma repercussão muito boa [o protesto] do domingo passado, quando trinta caras do Corinthians foram lá na Paulista. Isso aí cresceu.
Chico, quando conversamos em 2016, você apontou que existia unanimidade dentro da Gaviões em relação aos protestos contra o Fernando Capez, então presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp), acusado na ocasião de chefiar a máfia da merenda. Entretanto, você disse que ainda não havia consenso em relação ao golpe deflagrado contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. Como foi o processo político interno para a Gaviões, hoje, se colocar na vanguarda contra o governo Bolsonaro e o fascismo?
A realidade está empurrando a gente para isso. A realidade do povo. A dificuldade de trabalho, a falta de assistência médica para combater a Covid-19. Tudo isso está empurrando. O que levou o torcedor de futebol para a rua é a situação do país. Se ninguém se mexe, a gente resolveu se mexer. Porque a situação do país é patética.
Eu tenho 70 anos de idade e nunca vi essa situação que o país está vivendo. Juntou uma crise econômica, com uma crise política e uma crise sanitária. Eu vivi uma ditadura militar, mas nem naquela época existia uma situação como essa, de entrega do país.
Eu até acho que a sociedade está começando a se mobilizar, teve abaixo assinado, comunicado e tudo o mais. Mas a gente fez o que acha que deve ser feito, ou seja, ir para a rua se manifestar. Contra tudo isso. Precisamos dizer ‘opa, vocês não vão levar o país para onde vocês querem, vocês são meia dúzia’. Esse é um espetáculo patético o que eles fazem todo domingo no Palácio do Planalto. O cara andando à cavalo, com bandeira dos Estados Unidos, de Israel. Ou a sociedade brasileira se move ou essa minoria vai sugar o Brasil.
Eu sei o que foi a ditadura militar. Sei o que foi a censura à imprensa. Sei o que é não ter direito a um habeas corpus e a um advogado numa prisão. E eu não quero isso de volta para o país. Por isso, acho bacana ver a juventude corintiana e de outras torcidas se organizarem e saírem às ruas.
Claro que tem que ser algo sem conflito. Porque o governo Bolsonaro quer, justamente, que haja uma convulsão social, conflito. Nós viramos uma filial dos Estados Unidos, basta ver a declaração do [presidente norte-americano, Donald] Trump de querer colocar o exército nas ruas para reprimir as manifestações. O Bolsonaro vai querer copiar tudo isso aqui. Colocar o exército nas ruas, dar um golpe. Mas se a gente ficar sentado e não fazer nada, o que vai acontecer?
Em 2016, a Gaviões da Fiel levantou faixas nos estádios e realizou um ato com a pergunta: “quem vai punir o ladrão da merenda?”. Dois dias depois do protesto de rua, a sede da Gaviões foi alvo de uma operação do ex-secretário de Segurança de São Paulo e atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, que cumpriu diversos mandatos de prisão. Vocês temem por retaliações do Estado depois desses últimos protestos?
Eles fizeram isso, mas naquele mesmo dia à noite nós fomos em 10 mil pessoas para o Vale do Anhangabaú. Fizemos uma belíssima manifestação. E nós estamos vivos até hoje. O que aconteceu? Nós estamos nas ruas e levamos milhares de pessoas nesse domingo novamente. Toda a imprensa está repercutindo. Nós somos fortes, somos o povo brasileiro. Eles não conseguem acabar com a gente. Pode haver perseguição, não vai mudar em nada o que foi a história da Gaviões. A história da Gaviões é de luta pela democracia e de perseguição política que nós sofremos.
Eu vejo que a situação é um pouco diferente da outra. A sociedade hoje está bem dividida. O Dória está contra o Bolsonaro. O Sérgio Moro contra o Bolsonaro. Você tem toda a esquerda contra o Bolsonaro. Você tem a imprensa brasileira hoje quase de uma forma generalizada contra o Bolsonaro. O que o Bolsonaro tem é o apoio dos Estados Unidos.
Mas nós estamos vendo o Supremo [Tribunal Federal] enfrentando o Bolsonaro, denunciando a implantação do nazismo aqui no Brasil. Nós estamos fazendo a nossa parte, se cada instituição fizer a sua parte… Se as centrais sindicais fizerem sua parte, os partidos políticos… Nós estamos achando ridículo essa divisão entre os partidos. Esquece a eleição, ela é só daqui dois anos. Vamos assegurar hoje a democracia. Agora nós temos que ver o que nos une, não o que nos separa. Temos que nos unir a todos que querem a continuidade da democracia. Tem gente até de direita que quer a democracia.
Nós não fomos na [avenida] Paulista com palmeirenses, são-paulinos, santistas, todos juntos? O que nos separava é menor do que aquilo que nos une. Nós tentamos dar um exemplo para sociedade que ela deve se mobilizar. Não vamos ser a vanguarda disso, nem temos essa pretensão. Mas que sirva como exemplo. Nós acendemos um fósforo.
Chico, eu fiz essa pergunta para o Juca Kfouri recentemente e também gostaria de saber a sua opinião. Existem diversos jornalistas de esquerda especializados em futebol e esporte, mas poucos deles estão inseridos na mídia independente, popular ou alternativa. A esquerda negligencia o futebol?
Com certeza. Há um preconceito contra torcida organizada também por parte da esquerda. Sempre houve. Eu vejo pela Gaviões. Nós sempre tivemos ao lado de teses que a esquerda defendeu, mas tivemos pouco reconhecimento por isso. Tem um preconceito contra o futebol. O papel que o Sócrates, Afonsinho, Reinaldo, Casagrande desempenharam no futebol e para a democracia é algo muito grande.
O que está acontecendo de bom é que agora, com esse ato que fizemos na [avenida] Paulista, a esquerda está toda correndo atrás. Acho bom, porque perde o preconceito contra a gente. A mesma mídia que criminalizou a esquerda, também criminalizou as organizadas. Então é bom as organizadas não acreditarem só no que a mídia diz da esquerda, assim como a esquerda não acreditar no que a mídia diz da gente. Por que a esquerda não acredita na mídia do ponto de vista da política [institucional], mas acredita no que a mídia diz em relação às organizadas?
Eu também gostaria de saber a sua opinião sobre a politização dentro das quatro linhas. Por que é tão difícil encontrar jogadores que se posicionem politicamente?
Isso ocorre devido ao mercantilismo que se transformou o futebol. É só dinheiro, dinheiro, dinheiro. Celebridades, iates, casas. Cada um por si, Deus para todos. É um pouco o reflexo do que o país passou nesse período todo, de conservadorismo.
O próprio futebol reflete como a sociedade está pensando. E lamento muito por isso. Para quem teve Sócrates, ter Neymar hoje é muito triste. Dentro do campo e fora.
Na época da Democracia Corintiana, por exemplo, o país inteiro clamava por democracia. Nós temos agora uma parcela da sociedade que clama por uma ‘direitização’. A eleição do Bolsonaro é um reflexo disso. O próprio futebol reflete como a sociedade está pensando. E lamento muito por isso. Para quem teve Sócrates, ter Neymar hoje é muito triste. Dentro do campo e fora.
O que para você representa esse período de ausência de futebol? Você está com saudade?
Muito triste. Mas a tristeza já começou com essas arenas modernas. Futebol mudou, o público mudou. Eu lembro do Maracanã com a geral. Povão todo no estádio, com as bandeiras. Futebol moderno acabou com tudo isso. Então, eu acho ruim. O reflexo da tristeza do futebol dentro do campo é o reflexo do futebol na arquibancada. Mas não ter futebol nenhum é pior ainda. É o reflexo que nós estamos vivendo no país. É muito triste o que o país está vivendo, inclusive no futebol. Eu tenho muita saudade dos tempos da invasão corintiana ao Maracanã. Do Morumbi lotado. Com certeza é muito triste. Mas um dia tudo isso vai passar. Só a gente não se acomodar, né?!