Enquanto Europa reestatiza setor energético, Brasil entrega empresas na mão do mercado

Diante do aumento de 15% no preço dos combustíveis, Alemanha, Espanha e França adotam medidas estatizantes para conter crise

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O presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou a compra de 100% das ações da Électricité de France (EDF), maior empresa de energia do país (Foto: Adobe Stock)

Por Michele de Mello, especial para o Sindipetro-SP | Edição: Guilherme Weimann 

O mundo atravessa uma crise energética, aprofundada com o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, em fevereiro. A demanda global por petróleo já havia caído cerca de 10 milhões de barris/dia entre 2019 e 2020, devido à pandemia de covid-19, mas vinha recuperando-se no final de 2021. No entanto, com a suspensão da compra de combustíveis russos por parte dos Estados Unidos e da União Europeia, os preços do barril dispararam e iniciou-se uma corrida internacional dos países importadores pelos produtos derivados do petróleo.

Por isso, a previsão da Agência Internacional de Energia é de que o investimento mundial no setor aumente mais de 8% em 2022 para atingir um total de US$ 2,4 trilhões, enquanto o lucro líquido dos produtores mundiais de petróleo e gás deve dobrar, chegando a um valor de US$ 4 trilhões até o final do ano – em junho, o preço do barril Brent teve alta de 4,9%, sendo vendido em média a US$ 117.

As projeções da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) apontam que, até o final de 2022, a demanda volte a se estabilizar em 100,3 milhões de barris/dia de petróleo. Já para 2023, a expectativa é de aumento de 2,7 milhões de barris/dia.

Neste contexto, os 13 países membros da OPEP e seus dez aliados, que formam a OPEP+, decidiram aumentar a produção mundial em 648 mil barris diários, o que resultará em uma média de 42 milhões de barris/dia no fim de agosto.

Além disso, os Estados Unidos buscam estabelecer acordos com outros países produtores para diminuir o preço do combustível.

Com a inflação mais alta dos últimos 40 anos e o galão de 4,5L de gasolina a US$ 4,78, o presidente norte-americano Joe Biden tem pouco mais de três meses até as eleições de metade de mandato (Midterm Elections) para atender a demanda nacional descoberta pelo fim da importação do petróleo russo, responsável por atender cerca de 8% do mercado estadunidense.

Leia também: Novo governo colombiano promete substituir combustíveis fósseis por energias renováveis

Em consequência disso, a Casa Branca já obteve o compromisso da Colômbia e do Brasil de incremento da produção e, nessa mesma perspectiva, enviou representantes para dialogar com o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, em Caracas. Nos dias 15 e 16 de julho, Biden também viaja à Arábia Saudita e participa da Cúpula dos países do Golfo Pérsico (Emirados Árabes Unidos, Omã, Qatar, Bahrein, Kuwait, Arábia Saudita), a fim de selar novos acordos relacionados ao aumento da produção da commodity.

As sanções ao petróleo russo também foram responsáveis, nos EUA, pelo recorde das exportações que, em junho, alcançaram uma média de 3,4 milhões de barris/dia.

Já na Europa, as sanções ao petróleo russo poderão ter consequências ainda mais graves, com desabastecimento de combustíveis. Isso porque a Rússia é responsável por vender cerca de 40% do gás e carvão, e 25% do petróleo consumido pela União Europeia.

Em fevereiro, por meio do gasoduto Nord Stream I, a Europa recebeu 167 milhões de m³ de gás diariamente. Em julho, o volume caiu para 66 milhões de m³, provocando um aumento de 21% nos preços do combustível.

Existe o risco concreto de que países, como a Alemanha, fiquem sem reserva de energia para enfrentar o inverno europeu

Igor Fuser, professor da UFABC

“De fato, os países europeus estão pagando um preço muito mais caro do que imaginavam pelas sanções que aplicaram à Rússia, em resposta à invasão da Ucrânia. Existe o risco concreto de que países, como a Alemanha, fiquem sem reserva de energia para enfrentar o inverno europeu que virá”, afirma o professor da Pós-Graduação em Energia e em Economia Política Mundial da Universidade Federal do ABC (UFABC), Igor Fuser.

O relatório sobre investimento mundial em energia da AIE também aponta que a conta total de energia paga pelos consumidores em todo o globo provavelmente chegará a US$ 10 trilhões pela primeira vez em 2022.

Ainda que as sanções pareçam um tiro no pé, para a internacionalista Thayane Queiroz, essa pode ser a oportunidade para a Europa diminuir sua dependência dos combustíveis fósseis e avançar na agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e na sua proposta de ‘economia verde’.

“Há um entendimento de que a União Europeia deverá dar soluções à sua elevada e estrutural dependência dos recursos energéticos russos, o que passa por tentar substituí-los por meio de uma aposta na transição energética”, defende Queiroz, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Geopolítica, Integração Regional e Sistema Mundial da Universidade Federal do Rio de Janeiro (GIS-UFRJ).

Em 2021, os maiores níveis de investimento em energia renovável foram da China (US$ 380 bilhões), seguida pela União Europeia (US$ 260 bilhões) e Estados Unidos (US$ 215 bilhões).

Medidas contra a crise

Enquanto a transição energética ainda não é uma realidade, os governantes europeus vêm buscando alternativas para conter o aumento de 15% no preço do gás natural e cerca de 6% do carvão.

“É uma situação inédita que só poderia ser comparada à crise do petróleo de 1973. E afeta principalmente a classe trabalhadora e os setores de baixa renda”, comenta Fuser.

Na Alemanha, que atendia 60% da demanda nacional com o gás russo, o chanceler Olaf Scholz anunciou um plano de contingência, com o racionamento do uso de sistemas de calefação, redução de impostos que incidem sob o combustível e pagamento de subsídio às famílias mais vulneráveis.

Na França, o liberal Emmanuel Macron, que acaba de ser reeleito presidente, anunciou a nacionalização total da maior empresa de energia do país, com o objetivo de diminuir o preço final do megawatt. Atualmente, o governo francês já detém 84% das ações da Électricité de France (EDF).

“A EDF precisa urgentemente aumentar a geração de energia nuclear, que hoje é responsável por mais de 70% da energia consumida na França. Hoje a empresa está incapacitada de fazer isso por conta das suas dívidas, por isso que o Estado entrou em cena”, explica o professor de relações internacionais da UFABC.

De 2000 a 2017, a Alemanha e a França reestatizaram 500 empresas, segundo levantamento da empresa holandesa Transnational Institute (TNI).

Na Espanha, o presidente Pedro Sánchez anunciou um imposto extraordinário sobre os lucros das empresas de energia e dos bancos, com o objetivo de arrecadar 7 bilhões de euros até o ano que vem, assim como um plano de racionamento elétrico.

“Este governo não vai tolerar que empresas aproveitem a crise para acumular riqueza”, disse Sánchez na última terça-feira (12).

Apesar do discurso, o professor Igor Fuser analisa que as ações dos governos europeus buscam conter uma possível convulsão social devido ao alto custo de vida.

“Isso é particularmente preocupante para o governo francês de Emmanuel Macron, que um pouco antes da pandemia enfrentou os protestos massivos dos chamados coletes amarelos. Um movimento de cidadãos revoltados contra a alta do preço da gasolina e do diesel. Macron agora quer evitar uma reedição desses protestos, que hoje poderiam ter uma proporção ainda maior”, destaca.

Leia também: Linguista destrincha estratégia discursiva de Bolsonaro em relação à Petrobrás

Na contramão das política adotadas no continente europeu, em junho, o governo Bolsonaro privatizou a Eletrobras – maior empresa de energia da América Latina. Além disso, mantém a política de paridade de preços da Petrobrás e já deixou claro que pretende avançar no desmembramento da estatal, que atualmente tem de 63% das suas ações (com direito a dividendos) nas mãos do setor privado.

De 2016 a março de 2021, houve um aumento de 192% no preço do gás de cozinha, 73% na gasolina e 55% no diesel, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE). Com a venda da Eletrobras, a conta de luz deve aumentar de 15% a 25% até dezembro.

Bolsonaro e Guedes compõem uma facção política anti-Brasil por excelência e não dá sinais de nenhum zelo pelo patrimônio público

Thayane Queiroz, pesquisadora

“Ao invés de guiar-se pelo interesse público, a estatal é gerida a partir de uma lógica liberalizante que se compromete primordialmente com o pagamento de acionistas privados às custas do bem estar da sociedade brasileira e da nossa soberania. Bolsonaro e Guedes compõem uma facção política anti-Brasil por excelência e não dá sinais de nenhum zelo pelo patrimônio público, pelo capital diplomático do país e menos ainda por seus instrumentos estratégicos, como a Eletrobras e a Petrobrás”, critica Thayane Queiroz.

O Brasil é um dos poucos países no planeta com uma matriz energética predominantemente renovável. Entre os dez maiores geradores de energia elétrica do mundo, oito mantêm o controle público sobre o setor.

Enquanto o governo francês pagará cerca de 5 bilhões de euros (aproximadamente R$ 27 bilhões) para comprar todas as ações da EDF, o governo brasileiro recebeu cerca de R$ 30 bilhões para se desfazer do controle da Eletrobras, privatizada no mês passado. A União detinha cerca de 70% das ações com direito a voto da empresa. No caminho oposto da França, o governo Bolsonaro optou por reduzir sua participação na companhia a cerca de 40%, cedendo espaço sobre as decisões da empresa, inclusive para investidores estrangeiros.

Além disso, na última semana, o deputado Alexis Fonteyne (Novo/SP), da base do governo, enviou à Câmara de Deputados o projeto de lei que prevê a substituição da Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) nos contratos, entregando a gestão a uma empresa privada que poderia assumir os direitos da União pelo excedente em óleo (ou óleo lucro) da produção.

“A entrega da PPSA ao capital privado se incluiu na lógica da retirada completa do Estado brasileiro do setor de energia, do desmonte das políticas públicas para o setor e, em particular, do desmonte do modelo de partilha na produção do petróleo do pré-sal”, critica Fuser.

Se o PL for aprovado, o governo estima arrecadar cerca de R$ 398 bilhões. De acordo com as projeções da própria estatal, a União deve arrecadar US$ 122,7 bilhões (cerca de R$ 613 bilhões) com a venda do seu percentual na produção somente entre 2022 e 2031. Os contratos de partilha podem durar 35 anos.

Após a descoberta do pré-sal, o Brasil se posicionou entre os dez maiores produtores de petróleo cru do mundo, com o 9º maior parque industrial de refino.

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