Especialista aponta que redução do imposto apenas impactará contas públicas, sem efeito significativo sobre o preço do combustível
Por Vinicius Segalla, especial para o Petróleo dos Brasileiros | Edição: Guilherme Weimann
No dia 19 de maio, o preço do litro do óleo diesel em Fernando de Noronha, arquipélago pertencente ao estado de Pernambuco, passou de R$ 9,69 para R$10,14, respondendo a um aumento de 8,87% realizado pela Petrobrás dias antes nas refinarias. Foi o primeiro local do país onde o combustível alcançou um custo de dois dígitos para o consumidor.
Desde então, o governo federal passou a dizer que o Brasil corre o risco de enfrentar desabastecimento e racionamento de óleo diesel nos postos. Além disso, o presidente Jair Bolsonaro (PL) intensificou nos últimos dias sua campanha para que governos estaduais reduzam a alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) cobrada sobre o insumo. Para os que acatarem o pedido, está sendo prometido um ressarcimento por parte da União até um teto percentual a ser estabelecido em lei.
Mas, de acordo com estimativas de entidades e especialistas do setor, tal medida não alcançaria a redução de preço almejada, em nada podendo garantir que se interrompa a curva de alta no preço dos combustíveis no país, com o óleo diesel podendo chegar a R$ 10 por litro na bomba até o final do ano. Trata-se de um remédio ineficaz e que não ataca a raiz do problema.
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Um estudo realizado pelo Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep) aponta que a estratégia teria um custo de mais de R$ 30 bilhões aos cofres públicos, somente para reduzir o preço do diesel em R$ 0,50 e o da gasolina em R$ 0,80.
“O problema é que nada indica que haverá uma estabilização a curto prazo no preço do petróleo e seus insumos no mercado internacional. Assim, corre-se o risco de se empreender um enorme esforço fiscal que servirá só para enxugar gelo”, explica o coordenador do Ineep, Willian Nozaki.
Isso porque, além da alta do dólar em relação ao real – que é diretamente repassada pela Petrobrás aos preços praticados no mercado interno, graças à política de Paridade de Preços de Importação (PPI) –, fatores como a guerra na Ucrânia e queda sazonal na produção de países exportadores deverão continuar pressionando o preço do petróleo e do diesel no mercado internacional.
Nozaki explica também que uma economia de mercado permite que partes da cadeia de um setor (como a distribuição e a revenda) absorvam a redução tributária sem necessariamente reduzir os preços aos consumidores finais.
A política tributária e a cadeia produtiva do petróleo
O plano do governo para baixar o preço dos combustíveis baseia-se na seguinte premissa: ao se reduzir o imposto cobrado no diesel e na gasolina, os donos de postos irão imediatamente, e na mesma medida, derrubar os valores cobrados do consumidor final. Tal previsão, no entanto, é desprovida de qualquer lastro com a realidade. E o país possui provas recentes deste fato.
Em maio de 2018, por meio de decreto, o governo Michel Temer zerou a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide-combustíveis) sobre o diesel, em uma tentativa de baratear o combustível. A medida afetou diretamente a arrecadação dos estados, que ficam com 29% do que é recolhido por meio do tributo.
“O valor do óleo diesel nas refinarias terminou 2018 em queda, mas, enquanto isso, houve alta anual do preço cobrado nas bombas. Isso porque a margem gerada foi sendo absorvida por diferentes elos da cadeia de produção e distribuição do combustível”, explica o coordenador do Ineep.
De fato, conforme mostram os números publicados pela Petrobrás, em 2018, o preço do diesel nas refinarias apresentou retração de cerca de 4,6%. Enquanto isso, nas bombas, o derivado acumulou alta de 3,75% no mesmo período.
Dentro da cadeia de combustíveis, o setor de distribuição, por exemplo, tem praticado aumentos de margem superiores aos acréscimos de valor nas refinarias. Em agosto de 2021, a BR Distribuidora deixou de ser controlada pelo Estado, passando ao controle privado, concluindo um processo de saída da Petrobrás da atividade de distribuição que se iniciara em 2017. Desde então, as margens deste segmento da cadeia têm aumentado.
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Outro exemplo da eficácia duvidosa do plano do governo vem do mercado de trabalho. Em fevereiro de 2018, o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, do governo federal) divulgou um estudo sobre os impactos da Lei 12.546/2011, que promoveu uma desoneração da folha de pagamentos das empresas. Em vez dos 20% de contribuição patronal ao regime de previdência incidentes sobre a folha de pagamentos das empresas que aderiram ao chamado regime Simples de tributação, elas passaram a contribuir com um valor correspondente a algo entre 1% e 2% sobre o faturamento.
O objetivo era aliviar a carga tributária das empresas para criar novos empregos, ou seja, reduzir impostos para que esta queda gerasse reação direta do mercado contratante, na mesma lógica da desoneração proposta agora pelo governo sobre os combustíveis. O estudo do Ipea apontou, entretanto, que tal expectativa simplesmente não se tornou realidade.
Para o período anterior à lei de desoneração (2009-2011), a média de emprego nas empresas que seriam afetadas pela lei era 32,72 vagas. O estudo chegou à conclusão que, no período posterior à lei (2012-2015), a média de emprego ficou em 32,77, uma variação mínima. Restou constatado que a desoneração dada às empresas sobre a folha de pagamentos não cumpriu seu objetivo: geração de empregos formais.
De acordo com Carlos Eduardo Navarro, advogado tributarista, professor e membro do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), o mesmo risco estará correndo agora o governo caso aplique sua política de redução do ICMS. Em análise recentemente fornecida a um órgão de imprensa internacional, ele explicou: “A premissa é a de que se a gente reduzir o imposto do combustível em 10%, o preço deveria cair nessa proporção. Mas essa queda pode não acontecer. O que pode ocorrer é que as empresas incorporem essa redução nas suas margens de lucro. Em vez de repassar a redução para o consumidor, eles continuam cobrando o mesmo preço e lucram a diferença”.
No último dia 7, nove senadores de três partidos diferentes divulgaram nota conjunta sobre o tema, apontando a mesma questão levantada pelo especialista tributário e indo além, alertando para os malefícios para os sistemas de saúde e educação estaduais em virtude da queda abrupta e não planejada em suas arrecadações. Veja trecho abaixo:
“(…) Não há qualquer garantia que a redução de tributos chegue à bomba. Tampouco que eventual impacto da diminuição de tributos não seja anulado por novo anúncio de aumento de preços pela Petrobrás. (…) Trata-se, portanto, de proposta demagógica, eleitoreira e ineficaz, preservando interesses dos detentores de riqueza financeira e desorganizando as finanças públicas dos estados e municípios. O orçamento federal já foi desestruturado pelas emendas de relator (orçamento secreto). Agora, o governo atenta contra o orçamento dos estados e os serviços públicos demandados pela população.”
Um remédio errado e ineficaz
Em outro trecho da nota, os senadores afirmam:
“A alta dos combustíveis é fruto da política de preços da Petrobrás, baseada na paridade de preço de importação (PPI), adotada após o golpe de 2016 e aprofundada por Bolsonaro. O Brasil é autossuficiente em petróleo e produz cerca de 80% dos derivados que consome, não havendo justificativa para incorporar a volatilidade internacional aos preços internos como se o Brasil fosse totalmente dependente de importações.”
Quer dizer: até 2016, o governo federal mantinha uma política de preços dos combustíveis que priorizava o bolso da maioria dos acionistas da Petrobrás (ou seja, todos os brasileiros, já que a União é a maior detentora de ações da empresa), em detrimento de parte do lucro da fatia minoritária dos donos da companhia (os acionistas privados, em sua maioria estrangeiros).
Já a partir do governo Michel Temer e até hoje, tal política foi alterada, priorizando o bolso dos acionistas minoritários, que têm seu lucro garantido com a paridade de preços, e em detrimento da população brasileira, que paga mais caro pelos combustíveis e sofre com o decorrente aumento da inflação no país. Enquanto esta política não for alterada, pouca ou nenhuma eficácia terá qualquer redução tributária, que quando muito poderá gerar apenas algum benefício eleitoral para o atual presidente.
Além disso, desde o governo de Temer, a empresa também tem priorizado a exploração e produção do petróleo do pré-sal em detrimento de novos investimentos em refino, distribuição, gás, eletricidade e fertilizantes. Para essas atividades, a estatal passou a buscar redução de risco por meio de desinvestimentos (privatizações) e parcerias.
Como resultado de tal política, a produção nacional de diesel não acompanhou o aumento da demanda interna. De acordo com dados da Agência Nacional de Petróleo (ANP), em 2016, o Brasil produziu 45,36 milhões de metros cúbicos do combustível. Em 2019, houve uma redução, fechando o ano em 40,99 milhões. Já em 2021, a produção ficou em 47,67 milhões.
No mesmo período, o país passou de uma importação de 7,4 milhões de metros cúbicos (2016) para 12,9 milhões (2019) e 14,43 milhões (2021), nada menos do que um aumento de 95% em cinco anos. Com isso, o percentual do diesel vendido no país com origem estrangeira foi de 23,24% em 2021, o segundo maior percentual da série histórica, iniciada em 2000, e inferior somente ao registrado em 2017 (23,65%).
Willian Nozaki, do Ineep, aponta que, “nos estados em que a Petrobrás vendeu suas refinarias, o preço do combustível na bomba aumentou mais do que nos demais. Ou seja, a privatização do refino penalizou o consumidor final.
O maior exemplo está na Refinaria de Mataripe, antiga Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, vendida pela Petrobrás para a Acelen, empresa criada pelo fundo estatal Mubadala Capital, dos Emirados Árabes. A gasolina ali custa 6,4% a mais do que a vendida pela Petrobrás. A diferença em relação ao valor do diesel é de 2,66%.
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“O curioso é que o governo vendeu seu patrimônio em nome da eficácia que seria gerada pela privatização, mas quem comprou foi um fundo de natureza pública de um país árabe. Resultado: o preço do combustível aumentou e o Brasil perdeu o controle estratégico sobre essa produção”, pontua Nazaki, acrescentando ainda que a perda de controle sobre o refino deixa o país vulnerável aos planos estratégicos dos novos donos de refinaria, que podem preferir comercializar seus produtos com outros países em detrimento do mercado interno, aumentando a pressão sobre os preços.
Ou seja, graças às políticas adotadas pelos governos Temer e Bolsonaro e pela Petrobrás desde 2017, está mais difícil e oneroso resguardar o mercado interno dos interesses de empresas estrangeiras e das flutuações e aumentos sazonais no preço do barril do petróleo, tornando o país cada vez mais vulnerável a conjunturas externas e reduzindo sua própria soberania sobre a economia doméstica.
Por tudo isso, no último dia 3, a Federação Única dos Petroleiros (FUP) alertou para o risco de o litro do óleo diesel atingir R$ 10 no Brasil no segundo semestre do ano, acima dos atuais R$ 7, em média, com impactos ainda mais severos sobre a inflação e às vésperas da colheita da safra agrícola, quando aumenta a demanda pelo derivado.
A entidade explica que, diante do quadro de restrições de oferta internacional, distribuidoras no Brasil já se ressentem de dificuldades de importações de derivados. De acordo com relatos do setor, em fevereiro (ainda antes da invasão da Ucrânia), quando pedia uma cotação de carga, o distribuidor recebia cerca de 20 propostas comerciais; agora, dificilmente se consegue mais do que uma cotação por dia.
“Nada mais caro do que não ter”, afirma Deyvid Bacelar, coordenador-geral da FUP, prevendo risco de desabastecimento de diesel no Brasil, probabilidade de adoção de racionamento entre julho e agosto, e importações do produto de origens mais distantes e com qualidades distintas. Somado a isso, o desinvestimento em refino agrava a situação: “O governo continua com a política de desmonte da Petrobrás, com a venda de refinarias, redução de investimentos no setor e paralisação de obras em refinarias. A crise está contratada”, conclui.