Como dizer ‘fique em casa’ para quem não tem uma?

Padre Júlio Lancelloti aponta que isolamento não precisa deixar de lado a solidariedade com pessoas em situação de rua

Morador em situação de rua dorme em calçada no Brás (SP) ao lado de uma Bíblia (Foto: Alex Capuano)

Por Luiz Carvalho

A recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) é clara: ficar em casa é a melhor alternativa para evitar o contágio pelo COVID-19, o coronavírus, sobre o qual pouco se sabe e para o qual ainda não há vacina conhecida.

A medida que se torna regra para os sensatos, torna-se um grande dilema quando as grandes metrópoles olham para si mesmas e lembram que nem todos seus moradores tem um lugar para chamar de ‘casa’.

Segundo censo divulgado pela Prefeitura de São Paulo em janeiro deste ano, a população em situação de rua na capital paulista cresceu 53% em quatro anos, saltando de 15.905, em 2015, para 24.344, em 2019.

Porém, para o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, Padre Júlio Lancelloti, 72, o número é ainda maior. “Cruzamos alguns dados e chegamos a 30 mil pessoas pelas ruas”, avalia.

Mesmo diante de uma pandemia que tem como forma de prevenção o afastamento, Lancelloti ressalta que a solidariedade não precisa e não deve ser freada.

A própria Arquidiocese de São Paulo apontou um caminho ao oferecer a Casa de Oração do Povo de Rua, que tem capacidade para abrir até 50 pessoas, como um ponto de abrigo.

Em entrevista, Lancelloti defende medidas como o estabelecimento de uma renda mínima digna e acredita que o coronavírus irá fazer emergir uma nova consciência e de viver.

Presença de pessoas em situação de rua cresceu mais de 50% em cinco anos na capital paulista (Foto: Alex Capuano)
  • Como a pandemia de coronavírus afeta a população em situação de rua?
    Júlio Lancelloti – O impacto é muito grande, inclusive em quantidade de pessoas em situação de risco porque, embora se fale em 24 mil, ao cruzarmos alguns dados, nós chegamos a 30 mil pessoas pelas ruas de São Paulo. É uma situação bastante difícil, bastante desafiadora, alguns lugares onde estão eles são muito numerosos, com baixas condições de salubridade e sem a assistência que necessitam.

Algumas medidas deveriam ser urgentes, como a adoção de uma renda mínima, não num valor irrisório, mas que desse condições para as pessoas sobreviverem com dignidade. E o apoio a catadores de materiais recicláveis e aos informais

Quais as principais dificuldades que as pessoas em situação de rua enfrentam numa crise como essa?
Lancelloti – Praticamente todas as medidas que são sugeridas não são acessíveis a quem está nas ruas, como o uso de água potável e a higienização. A orientação é ‘fique em casa’, mas e quem vive na calçada? Onde será essa casa?

Londres, por exemplo, abriu vários hotéis que estavam ociosos para acolher essas pessoas. Esse é um drama.

Outro é a alimentação, porque muitas pessoas que faziam doação não estão fazendo mais neste momento, o que deixa milhares sem assistência de alimentação, higiene e condições mínimas de sobrevivência.

Dentro desse grupo de pessoas fragilizadas há aqueles ainda mais frágeis?
Lancelloti – Sim, os idosos, que estão numa faixa de 50 a 60 anos e representam cerca de 17% daqueles que vivem na rua. Também as pessoas que já possuem doença crônica. É uma situação muito difícil e desafiadora.

Antes mesmo da crise, o Brasil já enfrentava um processos de recessão, cresceu apenas 1,1% em 2019. Isso impacta no crescimento das pessoas que adotaram a rua como lugar de moradia?
Lancelloti –
Sim, isso é acelerado, o próprio censo que a prefeitura fez em São Paulo mostrou isso.

Existe um perfil comum a todas essas pessoas?
Lancelloti – O que vemos são pessoas que tinham família, moravam com a família, tiveram problema de desemprego, inadimplência, perda de domicílio. Há pessoas que tiveram problema de saúde, não puderam mais trabalhar, gente que está andando pelo Brasil em busca de emprego.

Muitos chegaram a São Paulo e não conseguem retornar para o estado de origem. É uma população heterogênea, mas que vive o mesmo drama, o abandono.

Diante de uma situação em que há a necessidade de se proteger de algo invisível, em que não é possível identificar quem está com o vírus, cresce a discriminação contra pessoas em situação de rua?
Lancelloti –
Cresce porque essas pessoas ficaram mais visíveis, não são mais parte do cenário, passaram a ser vistas com mais nitidez e isso incomoda muito mais a população.

E o que a população pode fazer?
Lancelloti – Todos podem ser mais solidários. Há coisas que podemos cobrar do poder público, mas outras nós mesmos podemos fazer, como apoiar os grupos que ajudam os moradores de rua, que estão recebendo e precisam de doações para sobreviver. E nós mesmos, quando saímos, mesmo com mais dificuldade, e vamos ao supermercado, podemos reservar sempre algo para doar a quem vive na rua do nosso bairro.

O que temos a aprender com essa crise?
Lancelloti –
A vida humana tem que ser socorrida, valorizada e que mais importante do que a economia é salvar as pessoas

  • O senhor acredita que aprenderemos essa lição?
    Lancelloti – Acredito que sim e que, como diz o Papa Francisco, deva nascer uma nova forma de viver.

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