Desde 2016, a Petrobrás tem realizado um rebranding que inclui a tentativa de camuflar a precarização a partir da figura do ‘colaborador’
Por Evandro Botteon*
Caras e caros, você trabalhador(a) certamente deve gostar de se sentar em uma mesa de bar para tomar umas, ou conhece alguém que goste e certamente já presenciou aquela cena clássica na qual é necessário chamar o garçom para pedir mais uma gelada. Nesse momento, sobram substantivos para se referir ao trabalhador que lá está, garantindo a lubrificação alcoólica das engrenagens sociais. Chefia, companheiro, camarada, amigão, parceiro, amizade, parceirinho (essa é péssima), mestre e por aí vai. Mas, certamente, você nunca viu alguém se referir ao glorioso garçom assim : “OOOOO COLABORADOR, chega aí”.
E tem um porquê disso: não encaixa, simplesmente não vai bem. Você pode não conhecer a etimologia (origem) do termo ou a semântica da palavra, mas é o teu estômago que te avisa que simplesmente não dá. E espero que continue assim. Contudo, no mundo corporativo, esse ‘fenômeno’ não é novo. Inclusive é bem frequente e recorrente. Uma tática de ‘rebranding’ ou reposicionamento de marca, amplamente utilizada, certamente idealizada por marqueteiros neoliberais pseudo descolados que buscam deformar o significado das palavras, e isso claramente tem objetivos bem definidos.
A etimologia da palavra colaborar vem do latim collaborare (“co” – em conjunto; “laborare” – trabalhar, cansar-se), que significa trabalhar junto, ajudar, cooperar, trabalhar em cooperação, auxiliar. Portanto, um termo com um significado bacana, que passa uma boa impressão, algo com uma atmosfera eminentemente humana, com boas doses de solidariedade. Aos meus olhos imagino um quadro de relações horizontais, bilaterais, permeadas de respeito e cooperação. Trazendo mais um pouco de embasamento teórico, trago a referência de Sigmund Freud, em seu texto “O mal-estar da civilização”, no qual ele usa o termo ‘colaborador’ junto ao contexto de trabalho do homem primitivo, que tirava seu sustento do próprio cultivo, e contava com a colaboração de outros indivíduos (do seu próprio núcleo familiar) para somar naquele trabalho que contribui para o benefício e sobrevivência de todos daquele núcleo.
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Pois bem. A Petrobrás, desde 2016 (golpe parlamentar), deu uma bela guinada em direção a um ideal corporativo, que em última instância vem de uma cartilha neoliberal (que convenhamos, não tá dando muito certo, né?!) e claro que não poderia ser diferente. A empresa vem tentando transformar seus trabalhadores em ‘colaboradores’ já tem um tempo. Basta prestar um pouco de atenção e você, caro(a) peão, poderá ver o rebranding permeando toda a comunicação institucional da companhia. Nas notas à imprensa, nos cursos direcionados à força de trabalho, e principalmente nas falas da alta chefia.
Conforme dito anteriormente, isso não é à toa. O termo ameniza as precarizações das relações de trabalho, que estão nas fantasias mais despudoradas desses “jestores jênios”, que são na verdade guiados apenas pelo interesse individual, buscando sempre o máximo lucro, e olhando para as pessoas como apenas mais uma commodity a sua disposição em alguma de suas planilhas. Basta olhar para os novos modelos de negócio, alicerçados na uberização do trabalho, nos quais o objetivo é simplesmente dinamitar quaisquer direitos que o trabalhador possa vir a ter. Direitos que vieram à base de muito sangue, suor e luta. Ao longo de muitos anos. O motoboy que entrega a sua comida é um ‘colaborador’. Ele é ‘livre’ para fazer seu próprio horário (no entanto se trabalhar poucas horas por dia, passará fome), mas ter uma refeição garantida, aí já é demais né?! E a colaboração com o seu parceiro de negócios, onde fica? Penso que os “jênios” por trás desses movimentos imaginam que os trabalhadores são meio tapados, ou talvez contem com o fato de que a mesma ganância que os move possa dividir a força de trabalho e cooptar meia dúzia de capatazes que estariam dispostos a se deixar doutrinar por essas ideias, para ganhar um pouco mais às custas dos outros.
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No entanto, quando observo pessoas como Paulo Galo, liderança do movimento antifascista dos motoboys -alguém com pouca instrução formal, mas com muita sabedoria sobre o mundo que o cerca (confira aí) -, confirmo a minha intuição de que os trabalhadores não são tão tapados assim, muito pelo contrário. E não só quando observo lideranças como Galo, mas também quando percebo os meus companheiros de turno (pessoas muito inspiradoras, inteligentes e com bastante percepção do mundo que nos cerca) ainda vejo que estou cercado de trabalhadores e não de ‘colaboradores’.
Penso que o contexto também não colabora muito com a empresa, afinal ela não anda colaborando tanto assim conosco. Afinal, a realidade se impõe. E, no mundo real, a Petrobrás pratica preços alinhados ao mercado internacional, com a infame política do PPI (que rendeu 101 bilhões de lucro em 2022, sendo 44,4 bilhões só para acionistas estrangeiros), mas não aplica a paridade internacional aos salários. Segundo estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), a média de remuneração dos trabalhadores de petroleiras estrangeiras ultrapassa e muito a praticada pela Petrobrás para o ano de 2021. Os números não colaboram com a Petrobrás. A Royal Dutch Shell (Holanda) pagou em média 110 mil dólares por ano aos seus empregados, a Equinor (Noruega) 134 mil dólares por ano e a British Petroleum (Inglaterra) 172 mil dólares por ano. Esse último número, mais de duas vezes maior do que a remuneração praticada pela Petrobrás para o mesmo período.
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Ainda na esfera da realidade, e dos números: no período de 2014 a 2021, outro dado também não colabora muito com a Petrobrás. Também de acordo com o DIEESE, a petroleira apresentou uma redução no seu quadro de funcionários, de 86.108 para 45.532 trabalhadores. Essa é a maior redução de efetivo entre todas as maiores petroleiras. Com assustadores 47%. Isso sem falar nos contextos locais, nos quais a empresa faz cortes de gastos com itens como comida para seus ‘colaboradores’. Tudo isso faz parte de um cenário no qual nunca se gastou tão pouco com pessoal. Segundo o mesmo estudo do DIEESE, desde de 2016 a empresa vem reduzindo seus gastos com os trabalhadores. Saindo de 13% das receitas, para ínfimos 5,76% em 2021 (o menor patamar da série estudada). Um quadro que evidencia uma colaboração bem seletiva, apenas com os acionistas – também conhecidos como integrantes daquela entidade etérea que ninguém ousa desagradar, o tal do ‘mercado’.
Ainda assim, a petroleira tenta te convencer que você é um(a) colaborador(a). Imagino que seja guiada por aquela máxima de Joseph Goebbels de que uma mentira contada mil vezes torna-se verdade. Por isso, é necessário ficar alerta e vigilante. Pois tudo o que conquistamos com anos de luta está evidentemente sob disputa. A luta é dura e desigual. A empresa sabe que, desunidos, ‘colaboradores’ são presas fáceis. Mas também tem plena ciência de que juntos e colaborando uns com os outros, nossa força é imensa.
Portanto, meu caro, minha cara… colabore! Mas colabore com seus companheiros(as) de trabalho. Estamos no mesmo barco, e juntos somos muito mais fortes.